sábado, julho 16, 2005

Meridiano

A silhueta do jovem capataz despontou na linha vermelha do horizonte, como se emergisse calmamente de um lago escaldante nascido nas entranhas do Inferno, idéia que Seu Ambrósio considerava impossível, pois havia mandando o rapaz ao mercado, e a mais nenhum outro lugar. O moço chegou com a noite, acompanhado por um véu úmido que anunciava uma noite típica de Verão, repleta de sons e insetos que vinham refrescar perto o sangue dos homens.
-Brrr! Noite, seu Ambrósio!
Com um rosto impassível e com uma das mãos no relho, o velho iracundo deu um pulo do banquinho onde esteve de atalaia a tarde toda.
-Eu vou é partir essa sua cabeça ossuda! Como foi no mercado?
-Olha, a coisa tava mais preta que a cara do Negro Osmar.
-Tanto assim? Digo...Como assim “tava”? Então você conseguiu comprar o cavalo? Desembucha, homem!
-O Manga-Larga não...só porque o seu Honorário queria oitocentos contos de réis por ele! Aí eu já ia desistir, mas apareceu um sujeito diferente...
-Diferente como? Assim meio... “abichornado”?
-Não!! Longe de mim, seu Ambrósio! O caso é que o cabra escondia a cara debaixo dum chapelão de palha e meio que rebolava entre uma palavra e outra. Até achei que era algum bêbado, e já puxei o facão!
-Isso nem é facão, ta mais pra um chanfalho enferrujado... E o que o homem tratou contigo?
-Ele ouviu a minha tentativa de comprar o cavalo do Seu Honorário, então veio todo educado e me ofereceu o cavalo dele. Mas tinha um porém.
-Porém? Isso não me cheira bem!
-Eu também senti um cheiro estranho, patrão, mas não falei nada por educação. O guasca pediu pra eu assinar meu nome num papel, e eu assinei.
-Quê?! Absurdo! Por que diacho você fez isso? Pelo menos leu o papel?
-Sim?
-Ah, Joaquim! E se fosse um contrato? Você pode ter vendido nossa fazenda em troca de um cavalo que eu nem vi ainda... E pior: pode ser coisa do Cão.
O capataz fez a mesma cara que um coveiro faria ao ouvir um riso de dentro de um caixão. Ficou tão branco que quase podia se camuflar nos ladrilhos do banheiro de seu Ambrósio, que a esse ponto já estava apavorado.
-O o senhor a-acha mesmo? E agora?
-Calma, guri, eu to só brincando! – seu Ambrósio disse isso com expressão de quem não estava brincando.- Na certa era só um nota fiscal ou algo assim. Mas e o tal do pitiço, pelo menos tem saúde, tem porte?
-Acho que fiz bem, por que não é um cavalo comum, afinal, ele não pode morrer.
-Ah bom se você..QUE? Nós não podemos mata-lo, é isso?
-Pelo que eu entendi, não. Ele pode morrer cinco vezes: enquanto ele estiver vivo, estaremos bem; imagina cavalgar sem parar pra pastar nem beber água, nem gastar com veterinário!
-Eu vou te matar.
-Larga essa pá, seu Ambrósio! Eu comprovei a história. Pra provar que eu não sou burro nem nada, eu roubei a espingarda do Seu Roque e fui com o cavalo até o bosque. Lá, eu meti duas balas no meio da cabeçorra do bicho, e ele continuou em pé! Deu um berro horrível e começou a coicear, mas fora isso estava vivo.
-Não sei se te mato por ter roubado uma arma, por ter atirado num bicho indefeso e ainda por cima caro, ou por ter feito essa lambança toda, seu filho de uma vaca!
-Ai, calma! A noite vai ser clara hoje, vamos lá ver o cavalo e o senhor vai mudar de opinião.
Os dois se meteram mato adentro até o ponto mais elevado do terreno, onde marulhava um córrego em alguma proximidade indeterminada. Lá estava o cavalo, acima de um pequeno morro.
-Meu Deus, e não é que tem marca de bala mesmo? Como foi que cicatrizou em um dia só?
-Ué, essa foi a promessa do vendedor, o cavalo nunca morria. De primeira eu fiquei na dúvida, mas ali na minha frente mesmo ele decepou uma orelha do animal e ela prontamente cresceu de novo!
-E não é que você fez um ótimo negócio? Podemos transportar quanta carga nos for encomendada em apenas uma viagem, pois se os ossos do bicho quebrarem, voltarão ao que eram num instante!
-Mas façamos isso com prudência, afinal, ele tem apenas duas vidas.
-Ora, piá de merda, você acabou de dizer que ele tinha cinco vidas!
-Bem lembrado, “tinha”... É que logo que eu comprei ele, eu trouxe e dei um tiro bem no meio do focinho.
-Sei.
-Mas eu estava meio de longe, então achei que tivesse errado; ai eu atirei de novo.
-Bem típico! Mas você mesmo disse que só deu dois tiros nele!
-Com a espingarda sim. É que no segundo tiro ele tombou, ai eu me caguei todo, então corri até a despensa e fui pegar um balde de água e aqueles produtos da veterinária da cidade. Quando eu cheguei, o cavalo tinha sumido.
-Você comprou um animal enfeitiçado e sequer amarrou ele??
-Eu amarrei sim, mas acho que apartei demais o laço, por que quando eu o avistei, ele estava com a cabeça pendurada por uns fios de pele e fibra. Ai eu achei que era uma assombração e disparei de novo. Quando eu juntei a arma do chão, derrubei os remédios todos na grama. Nisso, o cavalo começou a tremer e a cabeça voltou ao lugar com um esforço mínimo.
-Cruz credo isso parece magia negra. Temos que benzer o cavalo. Chama o padre Carolino!
-Não posso.
-Por que?
-Por que eu matei ele. Quando o cavalo se recompôs pela quarta vez, o pobre do padre viu tudo e sai correndo pra espalhar a novidade. Se todo mundo soubesse, nossa vida viraria um Inferno! Eu usei a última bala no padre... E eu tenho a impressão de que o moço que e vendeu vai voltar aqui.
-Por que você diz isso?
-Ué, ele disse que voltaria caso o cavalo gastasse as cinco vidas.
-Aaargh!! Por que você não me disse tudo isso logo que chegou?
Nisso, do meridiano azul escuro surgiu uma figura. Como um enxame que se materializava girando no ar, sacudindo as cortinas das casas adormecidas e as folhas mortas dos quintais.
-Vim buscar tua alma, pobre mortal. Não soubeste lidar com tamanha responsabilidade, assim como Ele também não soube em outras eras.
-Seu Ambrósio, preciso lhe dizer uma última coisa.
-Diga, pobre condenado!
-Bem, eu não sabia escrever meu nome inteiro, então pus o do senhor, já que eu tive que escrever pelo senhor tantas vezes nas promissórias e nas contas da venda... O nome que me surgiu na mente foi o seu.
E entre irradiações intensas, os dois ascenderam rumo á mais longínqua das estrelas, deixando ali, numa noite agradável de Verão, um homem em sua mais nobre e verdadeira condição humana: a de ganancioso.

2 comentários:

Arthur disse...

bah. muito bom. realmente eu escrevo muito, mas esse texto já me passou de longe. é isso que eu naõ planejei ser engraçado. metafisicamente falando, surpreendeu.

Anônimo disse...

Mas isso aconteceu comigo!