quinta-feira, julho 21, 2016

LA PRESIDENTA

“Levantem-se e saúdam La Presidenta!” é o que diria o arauto se eu estivesse prestes a entrar no salão oval do meu palácio, na costa da minha ilha, no meio do meu mar caribenho. Não sou nenhuma monarca – afinal, isso aqui é uma República –, e longe disso, não recebi qualquer herança de ninguém. Construí tudo sozinha, inclusive a mim mesma, mas nunca esqueci de onde vim ou o que me fizeram, embora neste aspecto eu tenha me tornado realmente absoluta.

Não se trata aqui de relembrar o que outros fizeram a mim, contra mim ou a meu favor; não sou nenhuma vítima ou o resultado de algum desejo carnal ou maquiavélico. Arranquei o meu destino do lugar que não estava e forcei-o à minha vontade e disposição. Sou a senhora presidenta dessa ilha a qual batizei com o nome de Orgulho de Mi Mamá, em homenagem à ela, a única pessoa pura deste mundo, a única santa, que seguiu seu destino e foi brutalmente assassinada pelos mesmos guerrilheiros que me sequestraram, me transformaram em cozinheira, amante da tropa, me ensinaram a usar facas e à atirar, além de dizer que lutávamos para libertar o povo da opressão liberal estadunidense. Tive o prazer de castrar e transformá-los na minha guarda pessoal, assumindo eu própria o lugar de líder da revolução. Hoje ainda me temem e me obedecem cegamente. Você não tem noção de como tirar as bolas de um homem faz dele um devoto sem religião.

Mas esses detalhes deixo para contar outra hora, pois agora estou deitada em minha cama, o sol está radiante e ao meu lado tenho meu contrabandista favorito. La Presidenta é vista nas ruas da minha ilha como uma mulher forte, exuberante, às vezes um pouco sanguínea, é verdade, mas no fundo tenho muita afeição pelos meus filhos. Por todos eles, mesmo por aqueles mais rebeldes. Todos devem a mim sua existência, pois sem mim tudo seria o caos e a desordem. El Contrabandista, que agora dorme ao meu lado depois da noite caliente que tivemos, sabe muito bem disso. Crescemos juntos no seio da revolução, e muitas vezes me confessou que sem a minha liderança conquistada na ponta da faca, jamais teríamos expulsados os malditos yankees desse pedaço de terra cercada pelo mar, e muito menos feito uma aliança tão positiva com Moscou.

Como nem tudo são flores, o governo me chama para resolver os problemas que ele mesmo cria quando não estou comandando. Com toda a delicadeza de um eunuco, o chefe da minha guarda pessoal entra pela porta indiferente à minha nudez. “Alguma novidade?”, pergunto. “Los muertos se erguem de suas tumbas”, diz, com o cerimonial de um castrado. No primeiro momento, acredito se tratar de um acontecimento apocalíptico vodoo. “São os rebeldes, vestidos como caveiras, eles se rebelaram na costa. Acreditamos que estão sendo liderados por um pescador que retornou dos mortos. Todos os soldados da cidade foram eliminados”, concluiu. Mas é realmente vodoo este apocalípse, pensei. “Não me diga que é aquela aldeia modelo que estávamos fazendo a transição econômica, permitindo que eles comessem parte dos peixes que pescavam?”. “Essa mesma”. Idiotas. “Ainda por cima mataram todos os soldados? Hermoso, tens minha permissão para acabar com essa rebeldia, termine com ela antes que eu tenha que matar a todos e encerrar a transição econômica”, comandei. “Sim, senhora Presidenta”.

Assim que El Eunuco Hermoso saiu pela porta com a sua tarefa, pude pensar de forma mais clara quem estava por trás desse início de rebelião. Somente uma pessoa nesta ilha teria intenções de acabar com o sucesso econômico e político do meu governo. Somente um sacripanta teria condições de planejar uma rebelião no meu quintal. Somente Don Isidoro de León poderia infiltrar pescadores liberais e a favor do maldito livre mercado para acabar com a meu planejamento central e as tentativas bem sucedidas de melhorar a alimentação do meu querido e amado povo. Se não sabes, Don Isidoro é o Comandante da outra metade da ilha, um subordinado títere dos yankees. Governa aquela metade da minha ilha como um urso dançarino ao som de Elvis Presley, com nítida disposição para rebaixar a única experiência socialista que deu certo no Caribe. Não comentarei Cuba, com Fidel e Che. São dois idiotas pelotudos. Me ocorreu um plano, agora. Vais me pagar, puerco yankee, ou meu nome não é Estilôr Fernandez!

Acordei meu contrabandista favorito. “Hombre, o que aconteceu naquela aldeia? Não te dei instruções para ajudá-los a contrabandear os peixes?” “Não faço ideia do que falas, mi amor, estava dormindo...”. Outro idiota. Não sei como cheguei tão longe dependendo desses homens. Acho que deveria trocá-los todos por mulheres. Mas pensando bem, creio que não seria má ideia. Quantas vezes já não dormi com elas também?! “Escute aqui, Hombre, preciso que faças um favor para sua presidenta absoluta”. Mal terminei de falar, El Contrabandista pôs suas calças de linho, sua blusa e seguiu em direção à janela, “Tudo por minha razão de viver, tudo que quiseres, mi amor”, disse enquanto abotoava a camisa. Ele entendia muito bem o chamado do dever. “Reúna os melhores sindicalistas e nosso exército de grevistas e contrabandei-os para o outro lado da ilha. Quero que paralizem toda e qualquer atividade industrial ou agrícola daquele urso dançarino”. Olhou para mim com aquele sorriso que tantas vezes já me amolecera o coração, piscou como só ele piscava e partiu pela varanda, como o pirata imprevisível que sempre fora. “Hasta luego” sussurrou ao saltar.

Tenho uma última questão a resolver sobre essa rebelião de pescadores. A agenda mostra que tenho encontro com o conselho de indústria e comércio, e isso pode ser muito proveitoso. Embora tenha que lidar com aqueles dois energúmenos, vou usá-los adequadamente. Para que saiba, El Sindicalista e El Patrón nunca chegaram a nenhum acordo sem que eu não tenha que fazer alguma intervenção financeira, diga-se propina, ou ameaças explícitas para cooperarem. Tenho certeza que existe um problema sarcasticamente enorme que impede a construção de mais uma fábrica ou o aumento da produtividade no processo de enlatar peixes. Vão se acusar mutuamente, vão chorar a miséria, implorar que eu intervenhe a seu favor contra o outro, mas ao final farão o que eu quiser, o que eu ordenar. Meus filhos manham, mas obedecem. Desta vez tenho um plano melhor para eles, para além das tarefas ordinárias que estão fadados.

 “Presidenta”, disse El Sindicalista, “É impossível que os trabalhadores se sujeitem a mais e mais horas para que esse sujeito egoísta – e filho da burguesia da ilha! - consiga construir outra fábrica para eles continuarem a trabalhar e trabalhar”. “Ora”, interrompeu El Patrón, “Quanto mais trabalham, mais a ilha de vossa excelência terá grandeza, riqueza e poderá se impor contra os malditos yankees. Estamos fazendo a obra de La Presidenta”. “Devo confessar que os dois estão certos. Estão fazendo a minha obra, que é a obra do povo de Orgulho de Mi Mamá. Ocorre que estamos passando por um período de cautela. Sabem que Don Isidoro de León, aquele patife, está planejando um ataque à nossa nação?”, lhes disse. “Isso é um ultraje!”, disse El Patrón. “Exatamente! Quem pensa que é?!”, indignou-se El Sindicalista. “Calma, não precisam se preocupar, La Presidenta tem tudo sob controle. É por isso que os chamei aqui, para poder po-los à parte do plano ultra secreto que elaborei”. “Sei que podemos contar com nossa Presidenta”, disse El Sindicalista. “Nunca duvidei da vossa potencialidade, caríssima”, disse El Patrón. Os dois olharam de relance para um dos Eunucos Hermosos que acompanhava a reunião, como se ele pudesse perceber a falsidade de todos os elogios que me dirigiam.

“Escutem, não construiremos uma nova fábrica”, disse-lhes. “Acertada decisão, Presidenta! Acertada!”, exclamou El Sindicalista”. “Tampouco deixaremos os trabalhadores desocupados, teremos turnos dobrados”. “Corretíssima, corretíssima! Magnânima!”, exclamou El Patrón. “Deixarei com vocês dois a responsabilidade da construção de um muro que separe definitivamente o lado correto do lado errado da ilha”. Um segundo de silêncio de ambos. “Assim, El Sindicalista não terá que se preocupar com a construção de outra fábrica para a burguesia incorporada pela revolução, e El Patrón terá aumentada a capacidade produtiva do povo, incutindo-lhes a cultura do trabalho e da dedicação, enquanto protegem a ilha dos yankees. Estamos decidos? Excelente! Eunuco, traga aqueles projetos”, disse-lhes, “Olhem com atenção: quero que construam pequenas janelas nos muros para que possamos espionar o outro lado”. Apontei com o dedo os pequenos quadrados no projeto. “Eunuco supervisionará o trabalho de vocês. Ele certificará que o muro fique pronto antes que os ataques comecem. Não esqueçam que deixar de cumprir essa missão é punido como traição e morte. Estão dispensados”. Enquanto os dois, pálidos e silenciosos, saiam pela porta, sussurrei para El Eunuco: “Entregue a propina que combinamos quando começarem a construção, nem antes nem depois. Em alguns dias encontrá-los-ei no local combinado”, olhei para eles e conclui a reunião: “Divirtam-se no processo, La Presidenta é dura, mas é ternura sem fim”.

Em minutos é a hora do almoço, realmente umas das minhas favoritas. É o momento em que esqueço totalmente que tive qualquer reunião com aqueles dois, ou com quaisquer outros idiotas. O motivo principal da minha satisfação, contudo, é que posso sentar e ouvir os desajustados, mendigos, alcoolatras, drogados e desafortunados em geral da minha ilha, aquela parte do povo que os governantes chamam de “governados”. Nada me dá mais apetite do que ouvi-los contar e contar a mesma história, sem reclamar, sem pedir, sem negociar, sem mentir: apenas falam o que acreditam ser a si mesmos. Nada mais interessante também do que alguém – ou alguma coisa, em alguns casos – que não tem a mínima noção do que acontece de fato entre as dezenas de paredes desse meu palácio. Semana passada, por exemplo, recebi um desses malucos que amam o deus capitalista e os yankees e suas ideias, o qual estava internado no Sanatório Geral para Incapacitados Ideologicamente. Ele contou absurdos, típicos da doença que os acomete, de que guardas e enfermeiros estavam usando uns instrumentos de metal e choques elétricos para torturá-los, entre uma e outra garfada e gole de vinho. Um completo absurdo! Puro delírio de quem não tem noção do que acontece na minha ilha! Todos sabem que a lobotomia é a única solução cirúrgica para esses infelizes que acreditam no uncle sam. Essas histórias ao me divertirem, abrem o meu apetite!

Hoje a convidada parece ser ainda mais surpreendente. Ao que fiquei sabendo, é uma das poucas bruxas vodoos que sobreviveram à revolução. Meus assessores dizem que ela é capaz de prever o futuro, de saber o que aconteceu e o que ainda pode acontecer. Nunca acreditei nessas coisas, sempre o destino fui eu que construí, sozinha, como todos sabem. Mas que seja! “tragam o almoço e a convidada”, falei para o serviçal mais próximo.

Aquela coisinha esquisita entrou calmamente pelo salão, corcunda como só ela, e sentou do lado oposto na mesa. Silêncio. Após o serviçal por o primeiro prato, ela pegou os talheres e bagunçou a comida, espalhando por cima da mesa, de si, no chão. Silêncio. “Sabes que costumo convidar o povo para sentar comigo à mesa para que me contem o que se passa em suas vidas. Que me contas?”, indaguei-lha. “Todos morreremos, todos voltaremos ao fundo do mar”, ela disse, ao olhar para o fundo do prato e para as migalhas de pão e pedaços de carne por todo lado. “Sim, isso sei. Aqui em Orgulho de Mi Mamá, como no resto do mundo, todos morremos. Creio que seja a única conquista que não talhamos por nós mesmos, muitas vezes”. “Haverá sangue, dor e morte. Os amigos serão inimigos e os inimigos amigos. Traição e assassinato reinarão nos últimos dias. É o apocalipse vodoo”, profetizou. “Ora, minha coisinha esquisita, estás falando do passado, do presente ou do futuro?”, perguntei, divertindo-me, já que essa tem sido a sina da revolução e mesmo dos tempos que passaram antes dela no caribe e no continente americano. Comemos tranquilamente. Foi uma ótima refeição.

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