Precisamos falar
sobre La Revolucion, Padre, sobre essa carnificina e as outras também. Quando
digo falar, quero que fique claríssimo, mais claro que água de olho em dia de enterro,
que pretendo fazer o meu sermão e espero de quem me leia nada além do silêncio de
los muertos. Não espero respostas, interações de qualquer tipo, mesmo
porque estou falando comigo mesmo em meus pensamentos, do mesmo modo que o
farfalhar do vento e a sua direção somente são compreensíveis para ele, acho.
Isso me leva a crer, veja só, que não existe um interlocutor além da minha
pessoa, e as minhas ideias sobre La Revolucion não são nada além das indagações
que eu mesmo faria caso estivesse ouvindo a um outro interlocutor. E não poderia
ser de outro jeito, pois já sei todas as respostas sobre o assunto, o que evita,
de certa forma, os naturais constrangimentos do não saber...
Pensando bem, essa
situação de estar dentro de si torna a coisa toda muito cômoda para quem está só,
mas também sobre as coisas que sabe. Uma situação muito parecida com a do cão
que espera na soleira da porta a noite toda para entrar em casa, mesmo sabendo
que nunca deixaram ele entrar antes. Onde eu estava mesmo? Ah, sim, descrevendo
os pormenores de La Revolucion. Bem, não é que eu saiba muito sobre as coisas
em geral, sobre os planos do universo, especialmente o que o Grande Escritor
elaborou e qual a direção que as intrigas tomarão, o que de certa forma é
bastante estranho para um sacerdote religioso como eu, cuja ordem proclama
saber o sentido último dos mais misteriosos atos místicos. Enfim, não sei
muito, mas tenho o costume de falar pelos cotovelos sobre o que eu sei.
Ah! Acalme-se! O
que eu disse sobre não se manifestar? Parecem andorinhas fazendo ninhos nos
telhados da igreja. Essa história das andorinhas, inclusive, me lembra muito o
sonho que tive ontem a noite. Sonhei que estava na minha cidade natal, longe
dessa ilha, longe mesmo, na minha antiga casa, e olhava pela janela. Era noite.
Uma única estrela brilhava no céu. Imediatamente soube que se tratava de Vênus,
e corri para falar para minha mulher. No sonho, claro. É duro lembrar que ela
não está mais aqui, e que a sua ausência foi o motivo para eu ter me entregue
ao Grande Escritor como El Padre e m’escondido em uma ilha qualquer no Caribe.
Quando retornei à janela, no sonho, obviamente, a estrela tinha virado um
farol. Iluminava a tudo, girando e girando. Lembro que meu último pensamento,
antes de ser acordado por Los Muertos,
que avisavam que El Pescador havia acordado, foi “malditas andorinhas nos
telhados da igreja”, mas não eram andorinhas.
La Revolucion...
O que direi aqui sobre ela é resultado direto da minha sobrevivência pessoal a
muitos golpes, pancadas mesmo, abaixo da linha da cintura, o que me lembra
muito meus tempos como boxeador, mas essa é história para outro momento. Passei
por muitos governos impostos pela força e pela agitação, pelo ceticismo, mas
também pela fé. Todos em nome do povo e de sua salvação, na terra e no além.
Sobreviver inúmeras vezes requer do sobrevivente muito mais que habilidade para
se esconder, eliminar ameaças ou prever acontecimentos, como aquela folha
levada pelo vento, aquele mesmo vento de linhas atrás, folha essa que sempre
escapa de cair no leito do rio e ser levada pela corrente. Claro que isso é
elementar, na prática, saber onde cair... mas saber o que significa La
Revolucion é ainda mais importante. Não me leve a mal, Padre, se eu parecer um
professor que tenta repetidamente esquivar-se de sua própria lição, mas é o meu
jeito, a divagação...
Se não me engano
foi um peruano que chegou aqui na igreja, numa certa noite, todo assustado e
suado. Parecia uma lebre, magrinha, magrinha, esbaforida. Coitado, senti muita
pena, muita compaixão. Falei para ele que não precisava mais se esconder, nem
fugir, que havia chegado na casa do Grande Escritor e que aqui estava seguro,
que aqui ninguém fugia, que haviamos sido ensinados a permanecer. Ele não disse
nada, mas também não negou, e para mim não negar já é um modo de louvar ao
Grande Escritor. Sei que muitos não pensam assim, mas o Grande Escritor
escreve, apenas escreve, independente das linhas serem tortas ou não, ao
contrário desses falsos ídolos que andam por aí. Pois então, o peruano esse
está aqui ao meu lado, menos esbaforido, menos suado, pintado como num festival
mexicano. Ele faz sinal, neste exato momento, para que eu vá ver El Pescador,
que acaba de acordar. É muito estranho comparar o homem que conhecemos noutra
época, assustado e suado, e hoje vestido como um guerrilheiro. La Revolucion
muda mais os homens do que os governos...
O peruano tinha
alguns problemas com bebida e fumo. O povo dele, dizem as más linguas, gostam
de mascar uma folha. Algo assim. Eles mascam e ficam agitados, querendo mascar
mais. Ou esses seriam os bolivianos? Acho que são os peruanos. Tenho quase
certeza. Enfim, eles gostava de beber e de mascar folha. Se ainda fosse fumo,
não teria problema algum, porque por aqui tem muito, mas é coca mesmo. Bom, aí
ele veio para Orgulho de Mi Mamá e não
encontrou mais a folha dele. Entrou em colapso. A bebida, em si só, não
substituía. Veio até mim desesperado, queria se salvar do pecado de só querer
mascar a folha e beber água ardente. Aí me perguntou como que faria, como o
Grande Escritor ensinava. Arranjei-lhe folhas contrabandeadas. Virou outra
pessoa, muito mais presente na terra do que antes, muito mais aqui no chão do
que lá em cima, na angústia. É como eu sempre digo, se o problema é a folha, se
te faltas a folha, se tu queres a folha, que tenhas a folha, carajo!
Cada um desses Muertos que me olham, enquanto me
aproximo de El Pescador, eu conheci aqui mesmo, nessa igreja. Todos eles eram
perturbados por alguma tragédia, ou carregavam algum incômodo alarmante em suas
almas. Não chegavam a arrastar correntes, contudo. Eram como pedaços de panos
sujos e remendados, que a gente desamassa, lava e depois estende. Quando pegam
sol parecem novos, ainda que cheios de cicatrizes, de remendos. Todos vieram
até mim buscando inspiração para que o sol caribenho coalhasse suas almas,
tornando-as mais consistentes. Foi mais ou menos isso que fiz. Se queriam comer
peixes, eu lhes punha a mesa. Se queriam falar sobre os medos e angústias, eu
os reunia em grupo. Se queriam amar, lhes dava camas. Ora, sempre lhes disse
que não deveriam fugir de suas escolhas, que deveriam permanecer com os pés
juntos, mesmo que eu, particularmente eu, tenha corrido de mim mesmo para cá após
a morte.... São os conselhos que damos e os que seguimos...
El Pescador está
realmente acordado, ao menos de um olho. Um milagre do Grande Escritor, louvado
sejam suas linhas. Quando los muertos
o encontraram dentro daquele caminhão, estava irreconhecível. É engraçado como
um pescador que comparecia eventualmente aos nossos encontros pudesse
concentrar tanta atenção e dedicação dos amigos nem tão chegados. Lembro muito
bem como os demais não gostavam dele, não tanto, mesmo que trouxesse peixes
frescos para as refeições especiais, junto com alguns outros pescadores amigos
mais chegados. Eles temperavam, assavam e os dividiam com todos. Multiplicavam
a felicidade de uma vida sem ração. Era o caminho que eu havia sugerido para
ele quando chegou aqui certa vez, desesperançado, subimsso e muito desnutrido.
Queria saber como era a vida que nunca teve, como era a vida de um pescador que
come o que pesca, de um homem que se casa porque quer. Muito romântico, aliás,
tenho que admitir. Queria fugir dessa vida medíocre que, por alguma razão que
não a do Grande Escritor, ele estava fadado. Ter outro papel, ele dizia, outro
papel na vida. Dei-lhe os instrumentos para superar a si mesmo, ensinei a
contrabandear o peixe, a cozinhar o peixe, e sugeri que buscasse quantas
mulheres quisesse, pois em alguma delas encontraria o sentimento que buscava,
senão em todas.
“Padre, os
soldados mataram a todos. Donde esta mi
hija...”, me disse, sussurrando com o que restava da boca. “Eu sei, meu
filho”, respondi. “O que queres fazer em seguida, meu amigo, meu irmão?”,
perguntei-lhe. “Vingança”, respondeu. “Vingança por mim, pelo que fizeram com
quem eu amava, com mi hija”. Pois
então é assim que começa e assim que se recruta um guerrilheiro, mesmo que a
revolução não seja contra o governo, mas contra as circunstâncias que te prendem
a ti mesmo. Creio que agora ele encontrou os motivos profundos do viver, do
estar aqui e não lá em cima. Os motivos que farão dele uma pessoa completa, uma
pessoa pronta para viver a sua vida na plenitude que o Grande Escritor designou.
Ele me olhou com
o único olho, e fez algo que poderia, em algum universo, ser considerado um
sorriso. Grotesco. Parece que o que havia de errado e sem sentido em sua vida
saiu para fora e tomou a dimensão do corpo, como retalhos de couro fervido. O
que os outros escondem com maquiagem, com pó de arroz e tinha negra é parte
insparável del Pescador e dessa revolução. É como sempre digo, é preciso matar
o essencial para deixar nascer o que se quer. E o que se quer não morre jamais.
Ser o mentor de
um grupo não necessariamente significa que se tenha construído alguma coisa
nossa, e essa é a beleza de tudo. Nossos filhos crescem e seguem suas próprias
vidas, e essa é toda a verdade que encontramos. O natural de La Revolucion é
que ela tome seus próprios rumos, siga para onde ela for, dependendo apenas da
vontade inerente de plena realização de cada um dos guerrilheiros. Se me
perguntares o que fiz para organizá-la, eu direi que quase nada, que estava
tudo pronto para acontecer, dentro de cada um de nós.
Mesmo antes de
conseguir terminar meus pensamentos sobre La Revolucion, El Asador irrompeu o
quarto fétido, mal podendo segurar as más notícias que sua presença carregava.
Ele era encarregado de vigiar a partir do púlpito. “Padre, La Presidenta se
dirige à aldeia. Suas carabinas estão acima de nós”, indicou o assoalho da
igreja. Olhei para o teto e entendi. Eles haviam feito uma parada para rezar.
“Peguem suas coisas, creio que esteja na hora de levar La Revolucion para o
restante da ilha”, lhes disse. De imediato, os presentes se ergueram, menos,
obviamente, El Pescador, que foi carregado à saída secreta. “Padre, marque
minhas palavras: van a sufrir”. Com
um gesto indicador sobre os lábios para que saíssem em silêncio, peguei as
escadas rumo à nave, agora repleta de armas, fardas e um odor misto de surrilho
e cigarro de palha.
Um soldado
adiantou-se no meio dos vinte, trinta ou quarenta outros que preenchiam o fundo
da igreja, ocultando os já raros raios de sol daquele fim de tarde. Ele fez um
sinal referencial, como se precisasse da minha autorização para avançar e ficar
ao meu lado. Sorriu e senti que sorria apenas para mostrar seus dentes aos
outros soldados, porque carregava mais hostilidade a mim e a minha religião do
que aos verdadeiros inimigos que vieram trucidar.
- A que devo a glória
de receber tão asseados gentlemans na
casa do Grande Escritor?
- Viemos aqui
para ter certeza de que os planos de La Presidenta estão de acordo com os
desígnios sobrenaturais da sua religião, Padre. – Disse, ao pé do meu ouvido.
- Se ousam
questionar sentidos é porque desconfiam do comando que lhes foi dado. O Grande
Escritor trabalha assim, estão no caminho acertado por Ele. Podem partir.
- De modo algum,
Padre. Deixe-me colocar em outro ponto de vista: viemos ter certeza que os
planos do Grande Escritor para La Presidenta estão de acordo com os planos de
sua excelência para com essa entidade folclórica onisciente.
- Há muitos
nomes para o Grande Escritor, mas cuidado com suas palavras. Pode cair-lhe um
raio na cabeça antes que a noite acabe. Bastam algumas linhas para que se
realize.
- Ora, Padre,
sou verdadeiramente comunista. Não acredito na ladainha desse escritor. Para
mim, ele é igual aos demais, falsos ídolos, ópio do povo. Contudo, muitos dos
meus homens acreditam, e precisam das palavras escritas por esse
sujeito-oculto-nas-orações para seguirem o propósito da revolução. Não os
culpo, ainda não chegaram ao grau máximo da laicidade. Agora me diga, Padre, o
que o Grande Escritor designou para La Presidenta?
- O grande
escritor tem planos para todos nós, soldado. Uns para se enganar, outros para
serem enganados.
- Quer dizer,
Padre, que somos enganados?
- Sim.
- Com que
frequência?
- O tempo todo.
- Absurdo, Padre.
Línguas cheias de malícia dizem que los muertos
surgiram dessa aldeia. La Presidenta sabe que seu povo nada tem o que reclamar
dela, e que los muertos estão infiltrados a mando de Don Isidoro de Leon,
aquele porco yankee usurpador da
vontade popular – cuspiu - Será que La Presidenta estaria enganada, Padre? Não
acredito nisso; creio que se vasculhássemos cada casa dessa aldeia, inclusive
os porões dessa igreja, não encontraríamos um aldeão sequer descontente com o
governo.
- Certamente não encontrarão ninguém, pois a
esta hora todos já devem ter partido.
- Com razão,
Padre. Esses infiltrados capitalistas jamais permaneceriam aqui quando vissem o
pelotão. Contudo, El Eunuco, a comando de La Presidenta, deu ordens bem
específicas para nosso pelotão. Ela mesma ordenou que ele destruísse a tudo
antes que ela tivesse que fazê-lo. Por isso estamos aqui. Para que sua
excelentíssima não precise sair do palácio e acabar com a aldeia traidora.
- E no que posso
ser útil em tal gincana?
- Padre, se não
for exigir demais de sua santidade, ordeno que nos acompanhe. Pode não
acreditar, mas alguns soldados precisam da sua bênção enquanto executam as
tarefas. – virou-se para os demais soldados – Rapazes, ótimas notícias! O
Grande Escritor não somente tem planos para La Presidenta, como seu sacerdote
aqui vai nos acompanhar nessa realização!
Os soldados
pareciam muito aliviados ao ouvirem o seu comandante dar a notícia que de eu os
acompanharia durante o massacre da aldeia. Não os culpo, afinal, trucidar o
povo que se jurou proteger somente pode ser feito em nome do Grande Escritor,
mesmo que ele, em si, seja totalmente avesso a isso, já que eles não desejam o
massacre do fundo de seus corações.
Eles vieram até
mim e se ajoelharam, um a um, enquanto eu fazia o sinal do lápis, os
abençoando. Me acompanharam para fora da igreja, onde o sol já havia se
despedido. Agora eu podia ver, ao longe, nas ruelas, entre as casas, tochas
sendo carregadas. Vi as casas pegando fogo. Vi pessoas saindo desesperadas de
seus lares. As vi sendo colocadas contra as paredes e caindo após estalos de
armas de fogo. Vi caminhões cercando as saídas e homens armados atirando em
todos que tentavam fugir. Vi a fumaça subir em forma de morte, e o fogo sorrir
suavemente abaixo dela.
Fechei os olhos
e rezei. Pensei em todas aquelas vidas, com suas imperfeições, seus propósitos
que nunca seriam cumpridos. Em seus sonhos que agora eram reduzidos a
pesadelos. Pensei naquilo que poderiam ter sido. Pensei em tudo que foram, em
todas as lembranças que agora se perdiam como lágrimas na chuva.
Coincidentemente, os primeiros pingos caíam no meu rosto e no rosto dos
soldados. Um clarão de luz e um estrondo. Um raio e um trovão. Era hora de ir
para dentro de si.
LA
TEMPESTAD
Tal qual previsto
por El Padre, a morte seguiu a chuva. O soldados tiveram três de seu lado. A
primeira aconteceu quando um deles foi esfaqueado por um aldeão, no início do
massacre, porque teria matado o animal antes do dono. O segundo, porque foi
confundido pelo colega com o primeiro aldeão. O terceiro, um raio caiu em cima
de sua cabeça antes da noite acabar.
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