sábado, novembro 12, 2016

EL PADRE

Precisamos falar sobre La Revolucion, Padre, sobre essa carnificina e as outras também. Quando digo falar, quero que fique claríssimo, mais claro que água de olho em dia de enterro, que pretendo fazer o meu sermão e espero de quem me leia nada além do silêncio de los muertos. Não espero respostas, interações de qualquer tipo, mesmo porque estou falando comigo mesmo em meus pensamentos, do mesmo modo que o farfalhar do vento e a sua direção somente são compreensíveis para ele, acho. Isso me leva a crer, veja só, que não existe um interlocutor além da minha pessoa, e as minhas ideias sobre La Revolucion não são nada além das indagações que eu mesmo faria caso estivesse ouvindo a um outro interlocutor. E não poderia ser de outro jeito, pois já sei todas as respostas sobre o assunto, o que evita, de certa forma, os naturais constrangimentos do não saber...

Pensando bem, essa situação de estar dentro de si torna a coisa toda muito cômoda para quem está só, mas também sobre as coisas que sabe. Uma situação muito parecida com a do cão que espera na soleira da porta a noite toda para entrar em casa, mesmo sabendo que nunca deixaram ele entrar antes. Onde eu estava mesmo? Ah, sim, descrevendo os pormenores de La Revolucion. Bem, não é que eu saiba muito sobre as coisas em geral, sobre os planos do universo, especialmente o que o Grande Escritor elaborou e qual a direção que as intrigas tomarão, o que de certa forma é bastante estranho para um sacerdote religioso como eu, cuja ordem proclama saber o sentido último dos mais misteriosos atos místicos. Enfim, não sei muito, mas tenho o costume de falar pelos cotovelos sobre o que eu sei.

Ah! Acalme-se! O que eu disse sobre não se manifestar? Parecem andorinhas fazendo ninhos nos telhados da igreja. Essa história das andorinhas, inclusive, me lembra muito o sonho que tive ontem a noite. Sonhei que estava na minha cidade natal, longe dessa ilha, longe mesmo, na minha antiga casa, e olhava pela janela. Era noite. Uma única estrela brilhava no céu. Imediatamente soube que se tratava de Vênus, e corri para falar para minha mulher. No sonho, claro. É duro lembrar que ela não está mais aqui, e que a sua ausência foi o motivo para eu ter me entregue ao Grande Escritor como El Padre e m’escondido em uma ilha qualquer no Caribe. Quando retornei à janela, no sonho, obviamente, a estrela tinha virado um farol. Iluminava a tudo, girando e girando. Lembro que meu último pensamento, antes de ser acordado por Los Muertos, que avisavam que El Pescador havia acordado, foi “malditas andorinhas nos telhados da igreja”, mas não eram andorinhas.

La Revolucion... O que direi aqui sobre ela é resultado direto da minha sobrevivência pessoal a muitos golpes, pancadas mesmo, abaixo da linha da cintura, o que me lembra muito meus tempos como boxeador, mas essa é história para outro momento. Passei por muitos governos impostos pela força e pela agitação, pelo ceticismo, mas também pela fé. Todos em nome do povo e de sua salvação, na terra e no além. Sobreviver inúmeras vezes requer do sobrevivente muito mais que habilidade para se esconder, eliminar ameaças ou prever acontecimentos, como aquela folha levada pelo vento, aquele mesmo vento de linhas atrás, folha essa que sempre escapa de cair no leito do rio e ser levada pela corrente. Claro que isso é elementar, na prática, saber onde cair... mas saber o que significa La Revolucion é ainda mais importante. Não me leve a mal, Padre, se eu parecer um professor que tenta repetidamente esquivar-se de sua própria lição, mas é o meu jeito, a divagação...

Se não me engano foi um peruano que chegou aqui na igreja, numa certa noite, todo assustado e suado. Parecia uma lebre, magrinha, magrinha, esbaforida. Coitado, senti muita pena, muita compaixão. Falei para ele que não precisava mais se esconder, nem fugir, que havia chegado na casa do Grande Escritor e que aqui estava seguro, que aqui ninguém fugia, que haviamos sido ensinados a permanecer. Ele não disse nada, mas também não negou, e para mim não negar já é um modo de louvar ao Grande Escritor. Sei que muitos não pensam assim, mas o Grande Escritor escreve, apenas escreve, independente das linhas serem tortas ou não, ao contrário desses falsos ídolos que andam por aí. Pois então, o peruano esse está aqui ao meu lado, menos esbaforido, menos suado, pintado como num festival mexicano. Ele faz sinal, neste exato momento, para que eu vá ver El Pescador, que acaba de acordar. É muito estranho comparar o homem que conhecemos noutra época, assustado e suado, e hoje vestido como um guerrilheiro. La Revolucion muda mais os homens do que os governos...

O peruano tinha alguns problemas com bebida e fumo. O povo dele, dizem as más linguas, gostam de mascar uma folha. Algo assim. Eles mascam e ficam agitados, querendo mascar mais. Ou esses seriam os bolivianos? Acho que são os peruanos. Tenho quase certeza. Enfim, eles gostava de beber e de mascar folha. Se ainda fosse fumo, não teria problema algum, porque por aqui tem muito, mas é coca mesmo. Bom, aí ele veio para Orgulho de Mi Mamá e não encontrou mais a folha dele. Entrou em colapso. A bebida, em si só, não substituía. Veio até mim desesperado, queria se salvar do pecado de só querer mascar a folha e beber água ardente. Aí me perguntou como que faria, como o Grande Escritor ensinava. Arranjei-lhe folhas contrabandeadas. Virou outra pessoa, muito mais presente na terra do que antes, muito mais aqui no chão do que lá em cima, na angústia. É como eu sempre digo, se o problema é a folha, se te faltas a folha, se tu queres a folha, que tenhas a folha, carajo!

Cada um desses Muertos que me olham, enquanto me aproximo de El Pescador, eu conheci aqui mesmo, nessa igreja. Todos eles eram perturbados por alguma tragédia, ou carregavam algum incômodo alarmante em suas almas. Não chegavam a arrastar correntes, contudo. Eram como pedaços de panos sujos e remendados, que a gente desamassa, lava e depois estende. Quando pegam sol parecem novos, ainda que cheios de cicatrizes, de remendos. Todos vieram até mim buscando inspiração para que o sol caribenho coalhasse suas almas, tornando-as mais consistentes. Foi mais ou menos isso que fiz. Se queriam comer peixes, eu lhes punha a mesa. Se queriam falar sobre os medos e angústias, eu os reunia em grupo. Se queriam amar, lhes dava camas. Ora, sempre lhes disse que não deveriam fugir de suas escolhas, que deveriam permanecer com os pés juntos, mesmo que eu, particularmente eu, tenha corrido de mim mesmo para cá após a morte.... São os conselhos que damos e os que seguimos...

El Pescador está realmente acordado, ao menos de um olho. Um milagre do Grande Escritor, louvado sejam suas linhas. Quando los muertos o encontraram dentro daquele caminhão, estava irreconhecível. É engraçado como um pescador que comparecia eventualmente aos nossos encontros pudesse concentrar tanta atenção e dedicação dos amigos nem tão chegados. Lembro muito bem como os demais não gostavam dele, não tanto, mesmo que trouxesse peixes frescos para as refeições especiais, junto com alguns outros pescadores amigos mais chegados. Eles temperavam, assavam e os dividiam com todos. Multiplicavam a felicidade de uma vida sem ração. Era o caminho que eu havia sugerido para ele quando chegou aqui certa vez, desesperançado, subimsso e muito desnutrido. Queria saber como era a vida que nunca teve, como era a vida de um pescador que come o que pesca, de um homem que se casa porque quer. Muito romântico, aliás, tenho que admitir. Queria fugir dessa vida medíocre que, por alguma razão que não a do Grande Escritor, ele estava fadado. Ter outro papel, ele dizia, outro papel na vida. Dei-lhe os instrumentos para superar a si mesmo, ensinei a contrabandear o peixe, a cozinhar o peixe, e sugeri que buscasse quantas mulheres quisesse, pois em alguma delas encontraria o sentimento que buscava, senão em todas.

“Padre, os soldados mataram a todos. Donde esta mi hija...”, me disse, sussurrando com o que restava da boca. “Eu sei, meu filho”, respondi. “O que queres fazer em seguida, meu amigo, meu irmão?”, perguntei-lhe. “Vingança”, respondeu. “Vingança por mim, pelo que fizeram com quem eu amava, com mi hija”. Pois então é assim que começa e assim que se recruta um guerrilheiro, mesmo que a revolução não seja contra o governo, mas contra as circunstâncias que te prendem a ti mesmo. Creio que agora ele encontrou os motivos profundos do viver, do estar aqui e não lá em cima. Os motivos que farão dele uma pessoa completa, uma pessoa pronta para viver a sua vida na plenitude que o Grande Escritor designou.

Ele me olhou com o único olho, e fez algo que poderia, em algum universo, ser considerado um sorriso. Grotesco. Parece que o que havia de errado e sem sentido em sua vida saiu para fora e tomou a dimensão do corpo, como retalhos de couro fervido. O que os outros escondem com maquiagem, com pó de arroz e tinha negra é parte insparável del Pescador e dessa revolução. É como sempre digo, é preciso matar o essencial para deixar nascer o que se quer. E o que se quer não morre jamais.
Ser o mentor de um grupo não necessariamente significa que se tenha construído alguma coisa nossa, e essa é a beleza de tudo. Nossos filhos crescem e seguem suas próprias vidas, e essa é toda a verdade que encontramos. O natural de La Revolucion é que ela tome seus próprios rumos, siga para onde ela for, dependendo apenas da vontade inerente de plena realização de cada um dos guerrilheiros. Se me perguntares o que fiz para organizá-la, eu direi que quase nada, que estava tudo pronto para acontecer, dentro de cada um de nós.

Mesmo antes de conseguir terminar meus pensamentos sobre La Revolucion, El Asador irrompeu o quarto fétido, mal podendo segurar as más notícias que sua presença carregava. Ele era encarregado de vigiar a partir do púlpito. “Padre, La Presidenta se dirige à aldeia. Suas carabinas estão acima de nós”, indicou o assoalho da igreja. Olhei para o teto e entendi. Eles haviam feito uma parada para rezar. “Peguem suas coisas, creio que esteja na hora de levar La Revolucion para o restante da ilha”, lhes disse. De imediato, os presentes se ergueram, menos, obviamente, El Pescador, que foi carregado à saída secreta. “Padre, marque minhas palavras: van a sufrir”. Com um gesto indicador sobre os lábios para que saíssem em silêncio, peguei as escadas rumo à nave, agora repleta de armas, fardas e um odor misto de surrilho e cigarro de palha.

Um soldado adiantou-se no meio dos vinte, trinta ou quarenta outros que preenchiam o fundo da igreja, ocultando os já raros raios de sol daquele fim de tarde. Ele fez um sinal referencial, como se precisasse da minha autorização para avançar e ficar ao meu lado. Sorriu e senti que sorria apenas para mostrar seus dentes aos outros soldados, porque carregava mais hostilidade a mim e a minha religião do que aos verdadeiros inimigos que vieram trucidar.

- A que devo a glória de receber tão asseados gentlemans na casa do Grande Escritor?
- Viemos aqui para ter certeza de que os planos de La Presidenta estão de acordo com os desígnios sobrenaturais da sua religião, Padre. – Disse, ao pé do meu ouvido.
- Se ousam questionar sentidos é porque desconfiam do comando que lhes foi dado. O Grande Escritor trabalha assim, estão no caminho acertado por Ele. Podem partir.
- De modo algum, Padre. Deixe-me colocar em outro ponto de vista: viemos ter certeza que os planos do Grande Escritor para La Presidenta estão de acordo com os planos de sua excelência para com essa entidade folclórica onisciente.
- Há muitos nomes para o Grande Escritor, mas cuidado com suas palavras. Pode cair-lhe um raio na cabeça antes que a noite acabe. Bastam algumas linhas para que se realize.
- Ora, Padre, sou verdadeiramente comunista. Não acredito na ladainha desse escritor. Para mim, ele é igual aos demais, falsos ídolos, ópio do povo. Contudo, muitos dos meus homens acreditam, e precisam das palavras escritas por esse sujeito-oculto-nas-orações para seguirem o propósito da revolução. Não os culpo, ainda não chegaram ao grau máximo da laicidade. Agora me diga, Padre, o que o Grande Escritor designou para La Presidenta?
- O grande escritor tem planos para todos nós, soldado. Uns para se enganar, outros para serem enganados.
- Quer dizer, Padre, que somos enganados?
- Sim.
- Com que frequência?
- O tempo todo.
- Absurdo, Padre. Línguas cheias de malícia dizem que los muertos surgiram dessa aldeia. La Presidenta sabe que seu povo nada tem o que reclamar dela, e que los muertos estão infiltrados a mando de Don Isidoro de Leon, aquele porco yankee usurpador da vontade popular – cuspiu - Será que La Presidenta estaria enganada, Padre? Não acredito nisso; creio que se vasculhássemos cada casa dessa aldeia, inclusive os porões dessa igreja, não encontraríamos um aldeão sequer descontente com o governo.
-  Certamente não encontrarão ninguém, pois a esta hora todos já devem ter partido.
- Com razão, Padre. Esses infiltrados capitalistas jamais permaneceriam aqui quando vissem o pelotão. Contudo, El Eunuco, a comando de La Presidenta, deu ordens bem específicas para nosso pelotão. Ela mesma ordenou que ele destruísse a tudo antes que ela tivesse que fazê-lo. Por isso estamos aqui. Para que sua excelentíssima não precise sair do palácio e acabar com a aldeia traidora.
- E no que posso ser útil em tal gincana?
- Padre, se não for exigir demais de sua santidade, ordeno que nos acompanhe. Pode não acreditar, mas alguns soldados precisam da sua bênção enquanto executam as tarefas. – virou-se para os demais soldados – Rapazes, ótimas notícias! O Grande Escritor não somente tem planos para La Presidenta, como seu sacerdote aqui vai nos acompanhar nessa realização!

Os soldados pareciam muito aliviados ao ouvirem o seu comandante dar a notícia que de eu os acompanharia durante o massacre da aldeia. Não os culpo, afinal, trucidar o povo que se jurou proteger somente pode ser feito em nome do Grande Escritor, mesmo que ele, em si, seja totalmente avesso a isso, já que eles não desejam o massacre do fundo de seus corações.

Eles vieram até mim e se ajoelharam, um a um, enquanto eu fazia o sinal do lápis, os abençoando. Me acompanharam para fora da igreja, onde o sol já havia se despedido. Agora eu podia ver, ao longe, nas ruelas, entre as casas, tochas sendo carregadas. Vi as casas pegando fogo. Vi pessoas saindo desesperadas de seus lares. As vi sendo colocadas contra as paredes e caindo após estalos de armas de fogo. Vi caminhões cercando as saídas e homens armados atirando em todos que tentavam fugir. Vi a fumaça subir em forma de morte, e o fogo sorrir suavemente abaixo dela.

Fechei os olhos e rezei. Pensei em todas aquelas vidas, com suas imperfeições, seus propósitos que nunca seriam cumpridos. Em seus sonhos que agora eram reduzidos a pesadelos. Pensei naquilo que poderiam ter sido. Pensei em tudo que foram, em todas as lembranças que agora se perdiam como lágrimas na chuva. Coincidentemente, os primeiros pingos caíam no meu rosto e no rosto dos soldados. Um clarão de luz e um estrondo. Um raio e um trovão. Era hora de ir para dentro de si.

LA TEMPESTAD


Tal qual previsto por El Padre, a morte seguiu a chuva. O soldados tiveram três de seu lado. A primeira aconteceu quando um deles foi esfaqueado por um aldeão, no início do massacre, porque teria matado o animal antes do dono. O segundo, porque foi confundido pelo colega com o primeiro aldeão. O terceiro, um raio caiu em cima de sua cabeça antes da noite acabar. 

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