quarta-feira, julho 06, 2016

EL PESCADOR

Quando a areia da praia trancou meu barco e eu tive que empurra-lo até a beirada, com a ajuda dos meus amigos mais chegados, meu coração saltou como se eu tivesse prestes a matar um daqueles soldados que nos esperavam para contar os peixes e nos dar os cartões de ração. Não sei se era raiva, medo ou a maresia que deixava meus olhos ardendo, mas a temperatura daquela manhã aumentava muito rápido dentro de mim. Não nos deixavam vender nossos peixes, não nos deixavam comer sua carne fresca. Tudo ia para as fábricas de enlatados no norte da ilha, onde o governo salgava, colocava óleo e depois os distribuía como ração para nós, pescadores. No entanto, faziam alguns meses, isso não vinha acontecendo. A gente tinha um plano.

Saímos à noite com dois barcos, mas apenas um voltou. Parte da pescaria foi posta naquele e enviada para uma enseada um pouco afastada da aldeia. Lá, um dos nossos amigos mais chegados desembarcava os peixes frescos em carroças e depois as misturava com outras. Elas iam em direção à igreja, também clandestina, onde El Padre dividia os peixes entre os fiéis e dizia ser um milagre do nosso Grande Escritor. Esse contrabando era feito a alguns meses já, mas apenas eventualmente, para não chamar a atenção. Enquanto o governo se preocupava com a beira mar, estávamos no subsolo de uma igreja alimentando com peixes frescos nossos amigos mais chegados e os moradores mais confiáveis da aldeia.

A noite anterior tinha sido agradável, como normalmente eram as saídas ao mar. Conversamos sobre as estrelas e como elas indicavam o caminho para casa, sobre como era navegar toda noite e ter para onde voltar, para nossas mulheres e nossas famílias. Éramos paz e sossego, pondo redes ao mar e tirando peixes de lá. Comentamos como seria bom dividir entre nós pedaços deles. Discutíamos se o faríamos à batina, com ervas santas colhidas do quintal da igreja, ou à marinheiro, com bolinho de algas e sal. Nossas opções de tempero eram essas, e a vida seguia sem sobressaltos além das nossas eventuais aventuras empreendedoras.

De repente, tudo mudou. Não sei se saí de mim ou se algum espírito tomou conta do meu corpo enquanto eu ainda estava ali, o observando. Quando aquele soldado arrogante se aproximou do barco, deu um chute no casco e nos mandou abrir espaço para que eles pudessem contar os peixes, o sangue viscoso do seu interior espirrou sobre o meu rosto e o meu peito. Eu segurava um arpão de pesca e o arpão de pesca segurava o seu pescoço. O incidente foi acompanhado de um grito profundo e primitivo. Acompanhei tudo atônico dentro de mim, ao me ver fazer aquilo. Foi tudo muito rápido, e quando eu vi que o outro crápula se preparava para atirar em mim, meu amigo mais chegado atirou-se por cima dele, lhe roubou a arma e transformou seu rosto em guisado. O tempero do sangue, por um momento, pareceu terrivelmente assustador.

Fui pescador minha vida inteira. Abati todo tipo de criaturas marítimas, as destrinchei com minhas póprias mãos e com ferramentas de mil tipos, ganhei habilidade e rapidez, as quais fariam o maior matador de aluguel do governo parecer um amador. Foram anos de preparação, muitas e muitas repetições, até que o ato de matar e cortar e separar as vísceras do peixe se tornou tão natural quanto é para um soldado limpar o fuzil, mirar e atirar num aldeão desarmado. O abate de soldados, contudo, foi uma experiência completamente diferente, ao mesmo tempo que era a mesma coisa. O rosto dele, me olhando, com um misto de surpresa e medo, se tentando fazer ameaças ou pedindo perdão, impossível saber, pois não saía som algum além das borbulhas de sangue em sua boca. Senti uma superioridade e um alívio ao por fim àquela opressão militar que se afastaram o terror, o medo, tudo. Talvez foi por isso que seu olhar não me comoveu mais do que o olhar dos peixes.

 “Coloquem os corpos no barco”, disse, “antes que aquelas pessoas ali vejam o que aconteceu. Levem eles e os peixes para a enseada”. Ficou claro naquele momento que nunca mais entraria no mar para pescar nem viveria minha vida naquele lugar. O mar tinha morrido para mim junto com os soldados e os peixes. Eu olhei para meus amigos mais chegados, eles olharam de volta, e eu falei sereno, mais sereno do que na noite anterior: “Quando chegarem na enseada, sigam para à igreja, os encontro lá”. Minha vida inteira vi a mim mesmo como um pescador, sem grandes ambições, sem grandes perspectivas, sem glória ou imortalidade, e cumpri esse papel fielmente. Mas a mesma vida que o tinha me dado, de repente, deu-me outro, e agarrei-me a esse novo papel como um peixe abocanha a isca.

E tal qual o peixe, as coisas naquele dia não ocorreram nos conformes. Corri para a aldeia, sujo de sangue, esperando encontrar minha mulher e filha, e levá-las seguras para o esconderijo, mas notei que me olhavam como se eu fosse um assassino. Eu não era. Eu nunca fizera mal a ninguém. Eu matei aquele soldado, sim, mas foi um ato... um ato de justiça! Eles estavam saqueando o nosso trabalho, pegando tudo que havíamos pescado e dando para pessoas que não se importavam o mínimo conosco. Foi quando me peguei em cima de uma bancada, gritando a plenos pulmões para as pessoas na praça.

Elas pararam para me ouvir, algumas aplaudiram, outras gritaram que Estilôr Fernández não deixaria aquilo impune, que eu era um golpista e contra a revolução. Mas o que era a revolução dela, eu perguntei para eles, se não a injustiça, o roubo, a mentira e a violência. Alguns gritaram que era verdade, mas que mesmo assim a ira daquela mulher cairia sobre todos na aldeia e que eu tinha provocado a perdição deles. A maioria estava em silêncio, um silêncio sepulcral. Aquele silêncio significava que muitos de nós estávamos mortos. Foi pra eles que gritei, tentando levantar seus ânimos, que éramos Los Muertos, e que los muertos a la vida regressam! Olhando para trás e para os lados, segui desesperado para casa.

Quando lá cheguei percebi que deveria ter embarcado rumo à enseada com todos os meus amigos mais chegados. Em cima da mesa estava posta uma cruz de sal, e isso significava apenas uma coisa. O governo havia descoberto o nosso empreendedoríssimo contrabando e aqueles soldados que matamos não estavam apenas querendo contar os peixes. El Padre, por sorte ou por conveniência do Grande Escritor, havia descoberto o plano do governo, e do mesmo modo eu havia me antecipado à morte certa e dado cabo aos meus algozes. Minha família havia sido levada ao esconderijo e lá permanecia em segurança. Eu deveria encontrá-los na igreja. Era ao que eu me agarrava naquele momento, ao avistar a cruz de sal. Meu desespero diminuiu sensivelmente.

Do lado de fora, o barulho das carabinas e dos sussurros circulavam a casa. Uma emboscada. Eu não deveria ter parado na praça principal e feito aquela gritaria. Agora, todo soldado vingativo e sanguinário do lugar estava ali ou à caminho. Por la vagina de la serpiente! A casa tinha apenas uma saída e uma janela, e qualquer tentativa de fuga seria facilmente frustrada. Precisava fazer com que eles adentrassem-na e matá-los-ia um a um. Sussurros se agitavam como o vento por todos os lados, se aproximando. Peguei uma faca de estripar peixe e um cutelo. Encostei minhas costas na parede e fiz uma pequena reza, fechando os olhos. Santo Escritor, não faltai por mim... mas as abelhas picaram meus dois braços e minha perna. Só depois escutei o barulho dos tiros e o fedor da pólvora. Defronte à porta, pude ver a silhueta do soldado, envolto pela claridade da manhã e pela nuvem de fumaça. Um rosto disforme, um bigode largo e um sorriso no canto da boca, de puro deleite.

Arrastaram-me para uma cadeira e cerca de cinco pilantras de uniforme me cercaram. Sugeriram diversas vezes me matar, mas se fossem mesmo fazer isso, já teriam feito na primeira vez. O sangue que escorria me deixava tonto, mas tinha certeza de que se eu aguentasse o que estava por vir em seguida, eles não saberiam de nada. Eu tinha um novo papel a desempenhar, deveria fazê-lo com todas as minhas forças. A cada movimento involuntário que meu corpo fazia, as feridas das balas queimavam, e eram muitos movimentos. “Diga onde estão os outros, diga quem mandou matar Enrico e Mateo!”, disse o soldado de bigode largo, com o rosto colado ao meu. O silêncio do meu ofegar, seguido dos gemidos o fez perder mais uma vez a paciência. Sua mão me desmaiou naquela e em outras vezes. Acordava sempre com uma jarra de água no rosto, pois los muertos no mueren jamás.

“Tragam a mulher e a criança”, disse o soldado, para o meu desespero, “Ele vai falar”. O que se seguiu foi a situação mais difícil da minha vida. Percebi o quanto estava errado quando vi a cruz de sal, e que ela, agora, nem parecia tanto assim uma cruz. Minha segurança se desfez. Esse novo papel que tinha abraçado não fazia mais sentido algum, sem minha mulher e minha filha. Quem era eu? Um pescador, simplório pescador. Minha família era minha vida, e não estava em segurança. Elas tinham sido encontradas por eles antes de eu chegar. Isso me deixava em extrema necessidade, extremamento vulnerável. O hijo de puta fardado percebeu meu desespero assim que colocou minha mulher e minha filha na minha frente. Elas gritaram e choraram quando me viram, mas creio que foi mais pelo horror dos ferimentos e mutilações do que pelo terror de enfrentar aqueles soldados. “Acha que pode manter o silêncio quando estupramos e matamos sua familia?”, disse ele, sorrindo, “Acho que não”.

Implorei para que as deixassem em paz, que não fizessem o que estavam fazendo. Estava pronto para falar, contaria tudo. Revelaria o contrabando, os nomes dos meus amigos mais chegados. Diria onde estavam, como eram, o que vestiam. Assumiria a morte do soldado na praia e diria quem aniquilou a face do outro. Faria tudo isso e também o que mais mandassem. Não façam isso com minha família, não façam isso comigo. Contudo, nenhuma voz saiu de minha boca. Nenhuma palavra se formou. Nenhuma frase foi posta em ordem. O soldado de bigodes largos, nu da cintura para baixo, atônito, implorava para que eu delatasse tudo. Eu me calei, não era mais um nobre pescador, que colocaria sua família antes da revolução.

Sem cerimônias, e até com certo alívio, o soldado cortou a garganta do que tinha sobrado de minha mulher. Pude ver seu rosto contorcido pela dor e em desespero, suas mãos alcançando o pescoço, tateando a ferida, tentando agarrar a dor e jogá-la longe, inútil. A sua vida se esvaiu lentamente enquanto deitava no chão. O soldado olhou para minha filha, e depois olhou de volta para mim. “Esse é o fim que quer para sua menina, pescador de mierda?”, disse. Cuspiu em minha direção. “Sua mulher morreu, e mesmo assim não disse nada. Que pensa da vida? Não tem amor nesse coração imundo de peixe?”, deu-me outro soco. “Não ama a sua família?” disse, dando outro soco e mais outro. Escutei o choro inconsolável da minha filha, indo a distância, como se a estivessem levando de mim.

Inevitavelmente parei de sentir meu corpo, e, no vazio que antecedia minha morte, me colocaram em um veículo. “Temos que levá-lo para a enfermaria, se ele morrer aqui, nós que seremos torturados. Andale! Andale!”. O caminhão foi posto em movimento, chocalhando de um lado para o outro, conforme passava por buracos na estrada ou fazia curvas sinuosas, se afastando da aldeia. Chegar a tempo me parecia um sonho distante, ainda mais quando meu corpo estendido na traseira do veículo rolou para frente com a brusca freiada. “Por el pene del diablo! Uma árvore!”, praguejou um dos tacanhos fardados. Tive a impressão de ouvir meus algozes descerem e remungarem sobre o trabalho de retirar aquele tronco da estrada e da pressa em me levar para o quartel. Na certeza de que morreria ali, ouvi o primeiro grito agoniante que irrompeu no silêncio da floresta. Onde estava a minha filha?

Não sei quanto tempo durou, se é que durou algum tempo aquela confusão. Na agonia de quem morre, as sensações do mundo deixam de existir, forçando o tempo a um ritmo invertido, interior e anacrônico. Do compartimento escuro em que me encontrava pude perceber uma claridade, que me pareceu divina naquele instante. “Temos um cadáver aqui. Parece que foi torturado e deformado com todos os tipos de sadismo. Olhem essas marcas no rosto, esse cheiro”, disse uma das sombras. “Santo Escritor, esses cagalhões de farda mereceram cada degolada. Isso aqui é um dos trabalhos mais crueis que já vi”, disse uma segunda sombra. “Deixe me ver, afastem-se”, disse uma terceira sombra, “Sim, é terrível. Mas mais terrível do que imaginávamos, pois esse homem ainda está vivo. Vamos levá-lo ao Padre, peguem as armas e munições, vamos”. As sombras me pareceram, naquele momento, diabólicas, com rostos em forma de caveira e olhos escuros profundos. Los muertos, déjame murir, por favor. Mas antes me digam, donde está mi hija.

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