“Levantem-se e
saúdam La Presidenta!” é o que diria o arauto se eu estivesse prestes a entrar
no salão oval do meu palácio, na costa da minha ilha, no meio do meu mar
caribenho. Não sou nenhuma monarca – afinal, isso aqui é uma República –, e
longe disso, não recebi qualquer herança de ninguém. Construí tudo sozinha,
inclusive a mim mesma, mas nunca esqueci de onde vim ou o que me fizeram,
embora neste aspecto eu tenha me tornado realmente absoluta.
Não se trata
aqui de relembrar o que outros fizeram a mim, contra mim ou a meu favor; não
sou nenhuma vítima ou o resultado de algum desejo carnal ou maquiavélico.
Arranquei o meu destino do lugar que não estava e forcei-o à minha vontade e
disposição. Sou a senhora presidenta dessa ilha a qual batizei com o nome de Orgulho de Mi Mamá, em homenagem à ela,
a única pessoa pura deste mundo, a única santa, que seguiu seu destino e foi
brutalmente assassinada pelos mesmos guerrilheiros que me sequestraram, me
transformaram em cozinheira, amante da tropa, me ensinaram a usar facas e à
atirar, além de dizer que lutávamos para libertar o povo da opressão liberal
estadunidense. Tive o prazer de castrar e transformá-los na minha guarda
pessoal, assumindo eu própria o lugar de líder da revolução. Hoje ainda me
temem e me obedecem cegamente. Você não tem noção de como tirar as bolas de um
homem faz dele um devoto sem religião.
Mas esses
detalhes deixo para contar outra hora, pois agora estou deitada em minha cama,
o sol está radiante e ao meu lado tenho meu contrabandista favorito. La
Presidenta é vista nas ruas da minha ilha como uma mulher forte, exuberante, às
vezes um pouco sanguínea, é verdade, mas no fundo tenho muita afeição pelos
meus filhos. Por todos eles, mesmo por aqueles mais rebeldes. Todos devem a mim
sua existência, pois sem mim tudo seria o caos e a desordem. El Contrabandista,
que agora dorme ao meu lado depois da noite caliente
que tivemos, sabe muito bem disso. Crescemos juntos no seio da revolução, e
muitas vezes me confessou que sem a minha liderança conquistada na ponta da
faca, jamais teríamos expulsados os malditos yankees desse pedaço de terra cercada pelo mar, e muito menos feito
uma aliança tão positiva com Moscou.
Como nem tudo
são flores, o governo me chama para resolver os problemas que ele mesmo cria
quando não estou comandando. Com toda a delicadeza de um eunuco, o chefe da
minha guarda pessoal entra pela porta indiferente à minha nudez. “Alguma
novidade?”, pergunto. “Los muertos se
erguem de suas tumbas”, diz, com o cerimonial de um castrado. No primeiro
momento, acredito se tratar de um acontecimento apocalíptico vodoo. “São os
rebeldes, vestidos como caveiras, eles se rebelaram na costa. Acreditamos que
estão sendo liderados por um pescador que retornou dos mortos. Todos os
soldados da cidade foram eliminados”, concluiu. Mas é realmente vodoo este
apocalípse, pensei. “Não me diga que é aquela aldeia modelo que estávamos
fazendo a transição econômica, permitindo que eles comessem parte dos peixes
que pescavam?”. “Essa mesma”. Idiotas. “Ainda por cima mataram todos os
soldados? Hermoso, tens minha
permissão para acabar com essa rebeldia, termine com ela antes que eu tenha que
matar a todos e encerrar a transição econômica”, comandei. “Sim, senhora
Presidenta”.
Assim que El Eunuco
Hermoso saiu pela porta com a sua tarefa, pude pensar de forma mais clara quem
estava por trás desse início de rebelião. Somente uma pessoa nesta ilha teria
intenções de acabar com o sucesso econômico e político do meu governo. Somente
um sacripanta teria condições de planejar uma rebelião no meu quintal. Somente
Don Isidoro de León poderia infiltrar pescadores liberais e a favor do maldito livre
mercado para acabar com a meu planejamento central e as tentativas bem
sucedidas de melhorar a alimentação do meu querido e amado povo. Se não sabes,
Don Isidoro é o Comandante da outra metade da ilha, um subordinado títere dos yankees. Governa aquela metade da minha
ilha como um urso dançarino ao som de Elvis Presley, com nítida disposição para
rebaixar a única experiência socialista que deu certo no Caribe. Não comentarei
Cuba, com Fidel e Che. São dois idiotas pelotudos.
Me ocorreu um plano, agora. Vais me pagar, puerco
yankee, ou meu nome não é Estilôr
Fernandez!
Acordei meu
contrabandista favorito. “Hombre, o
que aconteceu naquela aldeia? Não te dei instruções para ajudá-los a
contrabandear os peixes?” “Não faço ideia do que falas, mi amor, estava dormindo...”. Outro idiota. Não sei como cheguei
tão longe dependendo desses homens. Acho que deveria trocá-los todos por
mulheres. Mas pensando bem, creio que não seria má ideia. Quantas vezes já não
dormi com elas também?! “Escute aqui, Hombre,
preciso que faças um favor para sua presidenta absoluta”. Mal terminei de falar,
El Contrabandista pôs suas calças de linho, sua blusa e seguiu em direção à
janela, “Tudo por minha razão de viver, tudo que quiseres, mi amor”, disse enquanto abotoava a camisa. Ele entendia muito bem o
chamado do dever. “Reúna os melhores sindicalistas e nosso exército de
grevistas e contrabandei-os para o outro lado da ilha. Quero que paralizem toda
e qualquer atividade industrial ou agrícola daquele urso dançarino”. Olhou para
mim com aquele sorriso que tantas vezes já me amolecera o coração, piscou como
só ele piscava e partiu pela varanda, como o pirata imprevisível que sempre
fora. “Hasta luego” sussurrou ao saltar.
Tenho uma última
questão a resolver sobre essa rebelião de pescadores. A agenda mostra que tenho
encontro com o conselho de indústria e comércio, e isso pode ser muito
proveitoso. Embora tenha que lidar com aqueles dois energúmenos, vou usá-los
adequadamente. Para que saiba, El Sindicalista e El Patrón nunca chegaram a
nenhum acordo sem que eu não tenha que fazer alguma intervenção financeira,
diga-se propina, ou ameaças explícitas para cooperarem. Tenho certeza que
existe um problema sarcasticamente enorme que impede a construção de mais uma
fábrica ou o aumento da produtividade no processo de enlatar peixes. Vão se
acusar mutuamente, vão chorar a miséria, implorar que eu intervenhe a seu favor
contra o outro, mas ao final farão o que eu quiser, o que eu ordenar. Meus
filhos manham, mas obedecem. Desta vez tenho um plano melhor para eles, para
além das tarefas ordinárias que estão fadados.
“Presidenta”, disse El Sindicalista, “É
impossível que os trabalhadores se sujeitem a mais e mais horas para que esse
sujeito egoísta – e filho da burguesia da ilha! - consiga construir outra
fábrica para eles continuarem a trabalhar e trabalhar”. “Ora”, interrompeu El
Patrón, “Quanto mais trabalham, mais a ilha de vossa excelência terá grandeza,
riqueza e poderá se impor contra os malditos yankees. Estamos fazendo a obra de La Presidenta”. “Devo confessar
que os dois estão certos. Estão fazendo a minha obra, que é a obra do povo de Orgulho de Mi Mamá. Ocorre que estamos
passando por um período de cautela. Sabem que Don Isidoro de León, aquele
patife, está planejando um ataque à nossa nação?”, lhes disse. “Isso é um
ultraje!”, disse El Patrón. “Exatamente! Quem pensa que é?!”, indignou-se El Sindicalista.
“Calma, não precisam se preocupar, La Presidenta tem tudo sob controle. É por
isso que os chamei aqui, para poder po-los à parte do plano ultra secreto que elaborei”.
“Sei que podemos contar com nossa Presidenta”, disse El Sindicalista. “Nunca
duvidei da vossa potencialidade, caríssima”, disse El Patrón. Os dois olharam
de relance para um dos Eunucos Hermosos que acompanhava a reunião, como se ele
pudesse perceber a falsidade de todos os elogios que me dirigiam.
“Escutem, não
construiremos uma nova fábrica”, disse-lhes. “Acertada decisão, Presidenta!
Acertada!”, exclamou El Sindicalista”. “Tampouco deixaremos os trabalhadores
desocupados, teremos turnos dobrados”. “Corretíssima, corretíssima!
Magnânima!”, exclamou El Patrón. “Deixarei com vocês dois a responsabilidade da
construção de um muro que separe definitivamente o lado correto do lado errado
da ilha”. Um segundo de silêncio de ambos. “Assim, El Sindicalista não terá que
se preocupar com a construção de outra fábrica para a burguesia incorporada
pela revolução, e El Patrón terá aumentada a capacidade produtiva do povo,
incutindo-lhes a cultura do trabalho e da dedicação, enquanto protegem a ilha
dos yankees. Estamos decidos?
Excelente! Eunuco, traga aqueles projetos”, disse-lhes, “Olhem com atenção:
quero que construam pequenas janelas nos muros para que possamos espionar o
outro lado”. Apontei com o dedo os pequenos quadrados no projeto. “Eunuco
supervisionará o trabalho de vocês. Ele certificará que o muro fique pronto
antes que os ataques comecem. Não esqueçam que deixar de cumprir essa missão é
punido como traição e morte. Estão dispensados”. Enquanto os dois, pálidos e
silenciosos, saiam pela porta, sussurrei para El Eunuco: “Entregue a propina
que combinamos quando começarem a construção, nem antes nem depois. Em alguns
dias encontrá-los-ei no local combinado”, olhei para eles e conclui a reunião:
“Divirtam-se no processo, La Presidenta é dura, mas é ternura sem fim”.
Em minutos é a
hora do almoço, realmente umas das minhas favoritas. É o momento em que esqueço
totalmente que tive qualquer reunião com aqueles dois, ou com quaisquer outros
idiotas. O motivo principal da minha satisfação, contudo, é que posso sentar e
ouvir os desajustados, mendigos, alcoolatras, drogados e desafortunados em
geral da minha ilha, aquela parte do povo que os governantes chamam de
“governados”. Nada me dá mais apetite do que ouvi-los contar e contar a mesma
história, sem reclamar, sem pedir, sem negociar, sem mentir: apenas falam o que
acreditam ser a si mesmos. Nada mais interessante também do que alguém – ou
alguma coisa, em alguns casos – que não tem a mínima noção do que acontece de
fato entre as dezenas de paredes desse meu palácio. Semana passada, por
exemplo, recebi um desses malucos que amam o deus capitalista e os yankees e suas ideias, o qual estava
internado no Sanatório Geral para Incapacitados Ideologicamente. Ele contou
absurdos, típicos da doença que os acomete, de que guardas e enfermeiros estavam
usando uns instrumentos de metal e choques elétricos para torturá-los, entre
uma e outra garfada e gole de vinho. Um completo absurdo! Puro delírio de quem
não tem noção do que acontece na minha ilha! Todos sabem que a lobotomia é a
única solução cirúrgica para esses infelizes que acreditam no uncle sam. Essas histórias ao me divertirem,
abrem o meu apetite!
Hoje a convidada
parece ser ainda mais surpreendente. Ao que fiquei sabendo, é uma das poucas
bruxas vodoos que sobreviveram à revolução. Meus assessores dizem que ela é
capaz de prever o futuro, de saber o que aconteceu e o que ainda pode
acontecer. Nunca acreditei nessas coisas, sempre o destino fui eu que construí,
sozinha, como todos sabem. Mas que seja! “tragam o almoço e a convidada”, falei
para o serviçal mais próximo.
Aquela coisinha
esquisita entrou calmamente pelo salão, corcunda como só ela, e sentou do lado
oposto na mesa. Silêncio. Após o serviçal por o primeiro prato, ela pegou os
talheres e bagunçou a comida, espalhando por cima da mesa, de si, no chão. Silêncio.
“Sabes que costumo convidar o povo para sentar comigo à mesa para que me contem
o que se passa em suas vidas. Que me contas?”, indaguei-lha. “Todos morreremos,
todos voltaremos ao fundo do mar”, ela disse, ao olhar para o fundo do prato e
para as migalhas de pão e pedaços de carne por todo lado. “Sim, isso sei. Aqui
em Orgulho de Mi Mamá, como no resto
do mundo, todos morremos. Creio que seja a única conquista que não talhamos por
nós mesmos, muitas vezes”. “Haverá sangue, dor e morte. Os amigos serão
inimigos e os inimigos amigos. Traição e assassinato reinarão nos últimos dias.
É o apocalipse vodoo”, profetizou. “Ora, minha coisinha esquisita, estás
falando do passado, do presente ou do futuro?”, perguntei, divertindo-me, já
que essa tem sido a sina da revolução e mesmo dos tempos que passaram antes
dela no caribe e no continente americano. Comemos tranquilamente. Foi uma ótima
refeição.