quinta-feira, julho 21, 2016

LA PRESIDENTA

“Levantem-se e saúdam La Presidenta!” é o que diria o arauto se eu estivesse prestes a entrar no salão oval do meu palácio, na costa da minha ilha, no meio do meu mar caribenho. Não sou nenhuma monarca – afinal, isso aqui é uma República –, e longe disso, não recebi qualquer herança de ninguém. Construí tudo sozinha, inclusive a mim mesma, mas nunca esqueci de onde vim ou o que me fizeram, embora neste aspecto eu tenha me tornado realmente absoluta.

Não se trata aqui de relembrar o que outros fizeram a mim, contra mim ou a meu favor; não sou nenhuma vítima ou o resultado de algum desejo carnal ou maquiavélico. Arranquei o meu destino do lugar que não estava e forcei-o à minha vontade e disposição. Sou a senhora presidenta dessa ilha a qual batizei com o nome de Orgulho de Mi Mamá, em homenagem à ela, a única pessoa pura deste mundo, a única santa, que seguiu seu destino e foi brutalmente assassinada pelos mesmos guerrilheiros que me sequestraram, me transformaram em cozinheira, amante da tropa, me ensinaram a usar facas e à atirar, além de dizer que lutávamos para libertar o povo da opressão liberal estadunidense. Tive o prazer de castrar e transformá-los na minha guarda pessoal, assumindo eu própria o lugar de líder da revolução. Hoje ainda me temem e me obedecem cegamente. Você não tem noção de como tirar as bolas de um homem faz dele um devoto sem religião.

Mas esses detalhes deixo para contar outra hora, pois agora estou deitada em minha cama, o sol está radiante e ao meu lado tenho meu contrabandista favorito. La Presidenta é vista nas ruas da minha ilha como uma mulher forte, exuberante, às vezes um pouco sanguínea, é verdade, mas no fundo tenho muita afeição pelos meus filhos. Por todos eles, mesmo por aqueles mais rebeldes. Todos devem a mim sua existência, pois sem mim tudo seria o caos e a desordem. El Contrabandista, que agora dorme ao meu lado depois da noite caliente que tivemos, sabe muito bem disso. Crescemos juntos no seio da revolução, e muitas vezes me confessou que sem a minha liderança conquistada na ponta da faca, jamais teríamos expulsados os malditos yankees desse pedaço de terra cercada pelo mar, e muito menos feito uma aliança tão positiva com Moscou.

Como nem tudo são flores, o governo me chama para resolver os problemas que ele mesmo cria quando não estou comandando. Com toda a delicadeza de um eunuco, o chefe da minha guarda pessoal entra pela porta indiferente à minha nudez. “Alguma novidade?”, pergunto. “Los muertos se erguem de suas tumbas”, diz, com o cerimonial de um castrado. No primeiro momento, acredito se tratar de um acontecimento apocalíptico vodoo. “São os rebeldes, vestidos como caveiras, eles se rebelaram na costa. Acreditamos que estão sendo liderados por um pescador que retornou dos mortos. Todos os soldados da cidade foram eliminados”, concluiu. Mas é realmente vodoo este apocalípse, pensei. “Não me diga que é aquela aldeia modelo que estávamos fazendo a transição econômica, permitindo que eles comessem parte dos peixes que pescavam?”. “Essa mesma”. Idiotas. “Ainda por cima mataram todos os soldados? Hermoso, tens minha permissão para acabar com essa rebeldia, termine com ela antes que eu tenha que matar a todos e encerrar a transição econômica”, comandei. “Sim, senhora Presidenta”.

Assim que El Eunuco Hermoso saiu pela porta com a sua tarefa, pude pensar de forma mais clara quem estava por trás desse início de rebelião. Somente uma pessoa nesta ilha teria intenções de acabar com o sucesso econômico e político do meu governo. Somente um sacripanta teria condições de planejar uma rebelião no meu quintal. Somente Don Isidoro de León poderia infiltrar pescadores liberais e a favor do maldito livre mercado para acabar com a meu planejamento central e as tentativas bem sucedidas de melhorar a alimentação do meu querido e amado povo. Se não sabes, Don Isidoro é o Comandante da outra metade da ilha, um subordinado títere dos yankees. Governa aquela metade da minha ilha como um urso dançarino ao som de Elvis Presley, com nítida disposição para rebaixar a única experiência socialista que deu certo no Caribe. Não comentarei Cuba, com Fidel e Che. São dois idiotas pelotudos. Me ocorreu um plano, agora. Vais me pagar, puerco yankee, ou meu nome não é Estilôr Fernandez!

Acordei meu contrabandista favorito. “Hombre, o que aconteceu naquela aldeia? Não te dei instruções para ajudá-los a contrabandear os peixes?” “Não faço ideia do que falas, mi amor, estava dormindo...”. Outro idiota. Não sei como cheguei tão longe dependendo desses homens. Acho que deveria trocá-los todos por mulheres. Mas pensando bem, creio que não seria má ideia. Quantas vezes já não dormi com elas também?! “Escute aqui, Hombre, preciso que faças um favor para sua presidenta absoluta”. Mal terminei de falar, El Contrabandista pôs suas calças de linho, sua blusa e seguiu em direção à janela, “Tudo por minha razão de viver, tudo que quiseres, mi amor”, disse enquanto abotoava a camisa. Ele entendia muito bem o chamado do dever. “Reúna os melhores sindicalistas e nosso exército de grevistas e contrabandei-os para o outro lado da ilha. Quero que paralizem toda e qualquer atividade industrial ou agrícola daquele urso dançarino”. Olhou para mim com aquele sorriso que tantas vezes já me amolecera o coração, piscou como só ele piscava e partiu pela varanda, como o pirata imprevisível que sempre fora. “Hasta luego” sussurrou ao saltar.

Tenho uma última questão a resolver sobre essa rebelião de pescadores. A agenda mostra que tenho encontro com o conselho de indústria e comércio, e isso pode ser muito proveitoso. Embora tenha que lidar com aqueles dois energúmenos, vou usá-los adequadamente. Para que saiba, El Sindicalista e El Patrón nunca chegaram a nenhum acordo sem que eu não tenha que fazer alguma intervenção financeira, diga-se propina, ou ameaças explícitas para cooperarem. Tenho certeza que existe um problema sarcasticamente enorme que impede a construção de mais uma fábrica ou o aumento da produtividade no processo de enlatar peixes. Vão se acusar mutuamente, vão chorar a miséria, implorar que eu intervenhe a seu favor contra o outro, mas ao final farão o que eu quiser, o que eu ordenar. Meus filhos manham, mas obedecem. Desta vez tenho um plano melhor para eles, para além das tarefas ordinárias que estão fadados.

 “Presidenta”, disse El Sindicalista, “É impossível que os trabalhadores se sujeitem a mais e mais horas para que esse sujeito egoísta – e filho da burguesia da ilha! - consiga construir outra fábrica para eles continuarem a trabalhar e trabalhar”. “Ora”, interrompeu El Patrón, “Quanto mais trabalham, mais a ilha de vossa excelência terá grandeza, riqueza e poderá se impor contra os malditos yankees. Estamos fazendo a obra de La Presidenta”. “Devo confessar que os dois estão certos. Estão fazendo a minha obra, que é a obra do povo de Orgulho de Mi Mamá. Ocorre que estamos passando por um período de cautela. Sabem que Don Isidoro de León, aquele patife, está planejando um ataque à nossa nação?”, lhes disse. “Isso é um ultraje!”, disse El Patrón. “Exatamente! Quem pensa que é?!”, indignou-se El Sindicalista. “Calma, não precisam se preocupar, La Presidenta tem tudo sob controle. É por isso que os chamei aqui, para poder po-los à parte do plano ultra secreto que elaborei”. “Sei que podemos contar com nossa Presidenta”, disse El Sindicalista. “Nunca duvidei da vossa potencialidade, caríssima”, disse El Patrón. Os dois olharam de relance para um dos Eunucos Hermosos que acompanhava a reunião, como se ele pudesse perceber a falsidade de todos os elogios que me dirigiam.

“Escutem, não construiremos uma nova fábrica”, disse-lhes. “Acertada decisão, Presidenta! Acertada!”, exclamou El Sindicalista”. “Tampouco deixaremos os trabalhadores desocupados, teremos turnos dobrados”. “Corretíssima, corretíssima! Magnânima!”, exclamou El Patrón. “Deixarei com vocês dois a responsabilidade da construção de um muro que separe definitivamente o lado correto do lado errado da ilha”. Um segundo de silêncio de ambos. “Assim, El Sindicalista não terá que se preocupar com a construção de outra fábrica para a burguesia incorporada pela revolução, e El Patrón terá aumentada a capacidade produtiva do povo, incutindo-lhes a cultura do trabalho e da dedicação, enquanto protegem a ilha dos yankees. Estamos decidos? Excelente! Eunuco, traga aqueles projetos”, disse-lhes, “Olhem com atenção: quero que construam pequenas janelas nos muros para que possamos espionar o outro lado”. Apontei com o dedo os pequenos quadrados no projeto. “Eunuco supervisionará o trabalho de vocês. Ele certificará que o muro fique pronto antes que os ataques comecem. Não esqueçam que deixar de cumprir essa missão é punido como traição e morte. Estão dispensados”. Enquanto os dois, pálidos e silenciosos, saiam pela porta, sussurrei para El Eunuco: “Entregue a propina que combinamos quando começarem a construção, nem antes nem depois. Em alguns dias encontrá-los-ei no local combinado”, olhei para eles e conclui a reunião: “Divirtam-se no processo, La Presidenta é dura, mas é ternura sem fim”.

Em minutos é a hora do almoço, realmente umas das minhas favoritas. É o momento em que esqueço totalmente que tive qualquer reunião com aqueles dois, ou com quaisquer outros idiotas. O motivo principal da minha satisfação, contudo, é que posso sentar e ouvir os desajustados, mendigos, alcoolatras, drogados e desafortunados em geral da minha ilha, aquela parte do povo que os governantes chamam de “governados”. Nada me dá mais apetite do que ouvi-los contar e contar a mesma história, sem reclamar, sem pedir, sem negociar, sem mentir: apenas falam o que acreditam ser a si mesmos. Nada mais interessante também do que alguém – ou alguma coisa, em alguns casos – que não tem a mínima noção do que acontece de fato entre as dezenas de paredes desse meu palácio. Semana passada, por exemplo, recebi um desses malucos que amam o deus capitalista e os yankees e suas ideias, o qual estava internado no Sanatório Geral para Incapacitados Ideologicamente. Ele contou absurdos, típicos da doença que os acomete, de que guardas e enfermeiros estavam usando uns instrumentos de metal e choques elétricos para torturá-los, entre uma e outra garfada e gole de vinho. Um completo absurdo! Puro delírio de quem não tem noção do que acontece na minha ilha! Todos sabem que a lobotomia é a única solução cirúrgica para esses infelizes que acreditam no uncle sam. Essas histórias ao me divertirem, abrem o meu apetite!

Hoje a convidada parece ser ainda mais surpreendente. Ao que fiquei sabendo, é uma das poucas bruxas vodoos que sobreviveram à revolução. Meus assessores dizem que ela é capaz de prever o futuro, de saber o que aconteceu e o que ainda pode acontecer. Nunca acreditei nessas coisas, sempre o destino fui eu que construí, sozinha, como todos sabem. Mas que seja! “tragam o almoço e a convidada”, falei para o serviçal mais próximo.

Aquela coisinha esquisita entrou calmamente pelo salão, corcunda como só ela, e sentou do lado oposto na mesa. Silêncio. Após o serviçal por o primeiro prato, ela pegou os talheres e bagunçou a comida, espalhando por cima da mesa, de si, no chão. Silêncio. “Sabes que costumo convidar o povo para sentar comigo à mesa para que me contem o que se passa em suas vidas. Que me contas?”, indaguei-lha. “Todos morreremos, todos voltaremos ao fundo do mar”, ela disse, ao olhar para o fundo do prato e para as migalhas de pão e pedaços de carne por todo lado. “Sim, isso sei. Aqui em Orgulho de Mi Mamá, como no resto do mundo, todos morremos. Creio que seja a única conquista que não talhamos por nós mesmos, muitas vezes”. “Haverá sangue, dor e morte. Os amigos serão inimigos e os inimigos amigos. Traição e assassinato reinarão nos últimos dias. É o apocalipse vodoo”, profetizou. “Ora, minha coisinha esquisita, estás falando do passado, do presente ou do futuro?”, perguntei, divertindo-me, já que essa tem sido a sina da revolução e mesmo dos tempos que passaram antes dela no caribe e no continente americano. Comemos tranquilamente. Foi uma ótima refeição.

quinta-feira, julho 07, 2016

CÉU AZUL E TERRA CASTANHA

Existe uma profecia maia, asteca ou egípcia, enfim, de alguma dessas civilizações perdidas há muito que dizia que quando o céu encontrasse a terra, um novo ciclo de vida iniciaria. Sempre fui muito cético, óbvio, porque fisicamente a coisa toda dessa profecia é impossível, e nunca acreditei muito que a vida fosse feita de repetições.

Contudo, cheguei tão perto dela quanto era possível.

A coisa toda da profecia se tornou real quando vi a mim mesmo no fundo daqueles olhos azuis, como quem contempla o divino. Suas duas mãos cobriram o sorriso que se formava levemente, fazendo amanhecer o dia em seu rosto, mas fiz questão de segura-las o mais firme que pude, para que as nuvens dos dedos não pudessem oculta-lo. Disse a mim que não acreditava, e respondi que só agora acreditava.

É piegas? Sim. É clichê? Também. Alguém acha essa narrativa aí ligando o céu ao olhos, o sorriso ao sol, minha barba à terra e o nosso beijo como a forma de expressão de uma antiga profecia a coisa mais água com açúcar? Óbvio. Mas mesmo assim... aí está.

Perguntei se queria vinho ou chá, disse os dois. O sol se abriu novamente quando fiz menção de servir o vinho na cunha do chimarrão. A coisa toda é assim mesmo, muita brincadeira, muita gracinha, tudo é motivo para rir, se olhar, se tocar, se beijar. Felicidade em pequenas coisas, tão repetido em textos quanto textos sobre amor foram escritos. Mas mesmo assim... aí está.

Minha barba castanha agora tem fios de mais de três cores, entre elas o branco. Mas os fios do seu cabelo também se mostram multicoloridos, especialmente essa aí. Sempre fiquei muito intrigado com isso, por achar que o branco – a sabedoria – era a união de todas as cores. E é, portanto, a cor que marca um novo início, ao menos na nossa vida. O céu encontra a terra e um novo ciclo. Nada menos cético do que isso, nada mais apaixonado do que isso. O que para um cético não é nada menos do que acreditar, e para um velho nada mais que nascer de novo, mas mesmo assim... cá estou. 

quarta-feira, julho 06, 2016

A MÁQUINA DO TEMPO I

A História, digo, esta história foi reescrita inúmeras vezes, e a cada mudança o antigo foi descartado e este novíssimo texto que você lê aqui, pronto e acabado, aparece como se nada de diferente tivesse em algum momento acontecido. No entanto, a culpa não é daquele que vos fala, do meu perfeccionismo em lapidar palavra por palavra, mas dos próprios personagens.

A temporalidade desta história é praticamente incompreensível para aqueles que vivem dentro dela, os quais não tem a menor ideia de que o seu “destino” – estou cada dia mais convencido de que não é possível usar essa palavra – foi alterado inúmeras vezes, mesmo que eu, o escritor, seja obrigado a fazê-lo por conta dos seus próprios atos, por suas próprias escolhas.

Para quem está de fora é mais fácil compreender, mas somente na medida em que eu puder explicar o que cada um deles fez e como isso alterou sua própria existência. E se você me perguntar como faço para explicar, digo que tenho algumas anotações aqui, mesmo que elas, paradoxalmente, tenham deixado de existir por completo, exceto na minha memória.

Peguemos, por exemplo, o sr. Patrique e sua família. Neste exato momento, eles tomam o café da manhã juntos em um domingo ensolarado. Esse é o tão falado “presente”, o momento que nunca acaba. É um dos dias mais felizes de suas vidas, pois ele acabou de ser promovido no trabalho – numa empresa de tecnologia que encuba outras empresas que estão começando –, as crianças estão convencidas de que irão passear no parque à tarde e a sua esposa é a mulher com quem ele sonhou a vida inteira, tão bem sucedida profissionalmente quanto ele. O retrato da família perfeita, branca, cristã, classe média e heterossexual.

Bem, mas nas minhas anotações obliviadas, esse dia não é assim, ou não foi assim. Dr. Patrique, aqui, é um dos maiores físicos do mundo, vencedor de pelo menos três prêmios nobéis seguidos, além de outros tantos menores. Sua maior descoberta, ele prefere dizer, é uma contraposição à teoria linear do tempo, na qual este era percebido como uma sequência cronológica que ligava sequencialmente o presente ao passado e ao futuro. Sua descoberta, ao contrário, afirma que o tempo é um só, onde passado, presente e futuro acontecem juntos, em um único momento, e que seria possível, portanto, atravessa-lo como quem desce e sobe numa corda a partir de um ponto físico no espaço.

Todos ficaram impressionados quando ele e sua equipe apresentaram uma máquina que podia, nos primeiros testes, monitorar eventos em diferentes épocas, e perceber se havia chovido ou feito sol, se havia caído neve ou não, a partir de onde ela estava. A máquina do tempo tinha que ser levada a algum lugar e dali acessava todas as informações sobre o que já havia acontecido e o que ainda poderia acontecer. Foi classificada pelas revistas científicas como “A maior revolução científicas de todos os tempos” – Irônico, não?

A máquina foi levada às capitais do mundo civilizado e as previsões do tempo foram elaboradas de forma precisa, colhendo-se informações sobre desastres naturais, como furacões, alagamentos, desabamentos e outras catástrofes agora menos imprevisíveis. Passou-se a plantar melhor e a colher mais, sem que fosse preciso modificar os grãos geneticamente. Um grupo de cientistas também conseguiu calcular com sucesso as informações sobre mudanças climáticas, divulgando dados de que a temperatura média da terra, em diferentes regiões, realmente estava subindo por causa das ações do homem. 

Como consequência, novas políticas ambientais foram elaboradas, votadas e postas em prática por diferentes nações, mas uma auditoria conduzida pelo próprio Dr. Patrique chegou à conclusão de que os dados que fundamentavam as políticas globais de mudanças climáticas eram falsos, pois a máquina mostrava sempre a estabilidade do clima futuro.

Ninguém dos departamentos de pesquisa da União Europeia e dos Estados Unidos, que trabalhavam juntos no projeto, soube explicar o que havia se passado, e o Prof. Sanders, da Universidade de Nova York - e responsável pela coleta dos dados na máquina - confidenciou ao Dr. Patrique que ele e a sua equipe, ao analisar os dados, perceberam uma mudança súbita em relação à tendência da mudança climática, apontando que ela não existia no futuro, apesar de existir até aquele momento. A dúvida os corroeu por meses, até que concluíram, com base na própria teoria do Dr. Patrique, que, simplesmente por obterem os dados com o propósito de modificar o clima, eles tinham mudado a própria dinâmica temporal e feito ela desaparecer. Os dados, eles acreditavam, haviam mudado completamente, ab nihilo, sem que fosse possível qualquer evidência de que haviam mudado.

A solução que encontraram era mentir em relação aos dados, pois se mostrassem para a comunidade científica internacional que não havia de fato uma mudança climática, nenhuma ação seria feita, causando um paradoxo temporal em que hora eles concluíam que havia mudança climática, hora que não havia nenhuma. A solução pela mentira e maquiagem de dados tinha servido ao propósito e dado um jeito ao paradoxo. O Dr. Patrique compreendeu perfeitamente e assentiu, convencido que estava de que uma mentira poderia ser benéfica se utilizada para um bem maior. A auditoria nunca foi revelada a ninguém fora do próprio grupo que a elaborou.

Uma advertência, prezados leitores: para alguém que está de fora da mudança temporal, como eu ou você, acompanhando essa situação, é tudo muito claro; mas para eles, que são influenciados pela própria mudança que provocam, é impossível saber o que aconteceu. Um afogado jamais pode olhar as ondas de outro lugar que não do fundo em que se encontra. A superação do paradoxo pela mentira foi a única saída possível frente ao número infinito de repetição que o paradoxo levou para se solucionar, porque, se eles falassem sempre a verdade sobre a mudança climática, ela nunca seria resolvida. Sorte a nossa que o Prof. Sanders e sua equipe são muito engenhosos e perspicazes, porque se não, essa história teria acabado aqui, como abaram tantas outras que envolveram experimentos parecidos com essa máquina do tempo.

A teoria do paradoxo levou o Dr. Patrique a reforçar sua ideia de que mudanças no passado afetavam o presente e o futuro ao mesmo tempo - o que os anglo-saxões chamam de real time - não criando mundos paralelos, nem outras dimensões, mas introduzindo mudanças que se justificavam apenas em si mesmas. Ocorre que os problemas para o Dr. Patrique estavam apenas no início, pois o uso da máquina do tempo não poderia nunca ser reduzido ao controle do aquecimento global.

EL PESCADOR

Quando a areia da praia trancou meu barco e eu tive que empurra-lo até a beirada, com a ajuda dos meus amigos mais chegados, meu coração saltou como se eu tivesse prestes a matar um daqueles soldados que nos esperavam para contar os peixes e nos dar os cartões de ração. Não sei se era raiva, medo ou a maresia que deixava meus olhos ardendo, mas a temperatura daquela manhã aumentava muito rápido dentro de mim. Não nos deixavam vender nossos peixes, não nos deixavam comer sua carne fresca. Tudo ia para as fábricas de enlatados no norte da ilha, onde o governo salgava, colocava óleo e depois os distribuía como ração para nós, pescadores. No entanto, faziam alguns meses, isso não vinha acontecendo. A gente tinha um plano.

Saímos à noite com dois barcos, mas apenas um voltou. Parte da pescaria foi posta naquele e enviada para uma enseada um pouco afastada da aldeia. Lá, um dos nossos amigos mais chegados desembarcava os peixes frescos em carroças e depois as misturava com outras. Elas iam em direção à igreja, também clandestina, onde El Padre dividia os peixes entre os fiéis e dizia ser um milagre do nosso Grande Escritor. Esse contrabando era feito a alguns meses já, mas apenas eventualmente, para não chamar a atenção. Enquanto o governo se preocupava com a beira mar, estávamos no subsolo de uma igreja alimentando com peixes frescos nossos amigos mais chegados e os moradores mais confiáveis da aldeia.

A noite anterior tinha sido agradável, como normalmente eram as saídas ao mar. Conversamos sobre as estrelas e como elas indicavam o caminho para casa, sobre como era navegar toda noite e ter para onde voltar, para nossas mulheres e nossas famílias. Éramos paz e sossego, pondo redes ao mar e tirando peixes de lá. Comentamos como seria bom dividir entre nós pedaços deles. Discutíamos se o faríamos à batina, com ervas santas colhidas do quintal da igreja, ou à marinheiro, com bolinho de algas e sal. Nossas opções de tempero eram essas, e a vida seguia sem sobressaltos além das nossas eventuais aventuras empreendedoras.

De repente, tudo mudou. Não sei se saí de mim ou se algum espírito tomou conta do meu corpo enquanto eu ainda estava ali, o observando. Quando aquele soldado arrogante se aproximou do barco, deu um chute no casco e nos mandou abrir espaço para que eles pudessem contar os peixes, o sangue viscoso do seu interior espirrou sobre o meu rosto e o meu peito. Eu segurava um arpão de pesca e o arpão de pesca segurava o seu pescoço. O incidente foi acompanhado de um grito profundo e primitivo. Acompanhei tudo atônico dentro de mim, ao me ver fazer aquilo. Foi tudo muito rápido, e quando eu vi que o outro crápula se preparava para atirar em mim, meu amigo mais chegado atirou-se por cima dele, lhe roubou a arma e transformou seu rosto em guisado. O tempero do sangue, por um momento, pareceu terrivelmente assustador.

Fui pescador minha vida inteira. Abati todo tipo de criaturas marítimas, as destrinchei com minhas póprias mãos e com ferramentas de mil tipos, ganhei habilidade e rapidez, as quais fariam o maior matador de aluguel do governo parecer um amador. Foram anos de preparação, muitas e muitas repetições, até que o ato de matar e cortar e separar as vísceras do peixe se tornou tão natural quanto é para um soldado limpar o fuzil, mirar e atirar num aldeão desarmado. O abate de soldados, contudo, foi uma experiência completamente diferente, ao mesmo tempo que era a mesma coisa. O rosto dele, me olhando, com um misto de surpresa e medo, se tentando fazer ameaças ou pedindo perdão, impossível saber, pois não saía som algum além das borbulhas de sangue em sua boca. Senti uma superioridade e um alívio ao por fim àquela opressão militar que se afastaram o terror, o medo, tudo. Talvez foi por isso que seu olhar não me comoveu mais do que o olhar dos peixes.

 “Coloquem os corpos no barco”, disse, “antes que aquelas pessoas ali vejam o que aconteceu. Levem eles e os peixes para a enseada”. Ficou claro naquele momento que nunca mais entraria no mar para pescar nem viveria minha vida naquele lugar. O mar tinha morrido para mim junto com os soldados e os peixes. Eu olhei para meus amigos mais chegados, eles olharam de volta, e eu falei sereno, mais sereno do que na noite anterior: “Quando chegarem na enseada, sigam para à igreja, os encontro lá”. Minha vida inteira vi a mim mesmo como um pescador, sem grandes ambições, sem grandes perspectivas, sem glória ou imortalidade, e cumpri esse papel fielmente. Mas a mesma vida que o tinha me dado, de repente, deu-me outro, e agarrei-me a esse novo papel como um peixe abocanha a isca.

E tal qual o peixe, as coisas naquele dia não ocorreram nos conformes. Corri para a aldeia, sujo de sangue, esperando encontrar minha mulher e filha, e levá-las seguras para o esconderijo, mas notei que me olhavam como se eu fosse um assassino. Eu não era. Eu nunca fizera mal a ninguém. Eu matei aquele soldado, sim, mas foi um ato... um ato de justiça! Eles estavam saqueando o nosso trabalho, pegando tudo que havíamos pescado e dando para pessoas que não se importavam o mínimo conosco. Foi quando me peguei em cima de uma bancada, gritando a plenos pulmões para as pessoas na praça.

Elas pararam para me ouvir, algumas aplaudiram, outras gritaram que Estilôr Fernández não deixaria aquilo impune, que eu era um golpista e contra a revolução. Mas o que era a revolução dela, eu perguntei para eles, se não a injustiça, o roubo, a mentira e a violência. Alguns gritaram que era verdade, mas que mesmo assim a ira daquela mulher cairia sobre todos na aldeia e que eu tinha provocado a perdição deles. A maioria estava em silêncio, um silêncio sepulcral. Aquele silêncio significava que muitos de nós estávamos mortos. Foi pra eles que gritei, tentando levantar seus ânimos, que éramos Los Muertos, e que los muertos a la vida regressam! Olhando para trás e para os lados, segui desesperado para casa.

Quando lá cheguei percebi que deveria ter embarcado rumo à enseada com todos os meus amigos mais chegados. Em cima da mesa estava posta uma cruz de sal, e isso significava apenas uma coisa. O governo havia descoberto o nosso empreendedoríssimo contrabando e aqueles soldados que matamos não estavam apenas querendo contar os peixes. El Padre, por sorte ou por conveniência do Grande Escritor, havia descoberto o plano do governo, e do mesmo modo eu havia me antecipado à morte certa e dado cabo aos meus algozes. Minha família havia sido levada ao esconderijo e lá permanecia em segurança. Eu deveria encontrá-los na igreja. Era ao que eu me agarrava naquele momento, ao avistar a cruz de sal. Meu desespero diminuiu sensivelmente.

Do lado de fora, o barulho das carabinas e dos sussurros circulavam a casa. Uma emboscada. Eu não deveria ter parado na praça principal e feito aquela gritaria. Agora, todo soldado vingativo e sanguinário do lugar estava ali ou à caminho. Por la vagina de la serpiente! A casa tinha apenas uma saída e uma janela, e qualquer tentativa de fuga seria facilmente frustrada. Precisava fazer com que eles adentrassem-na e matá-los-ia um a um. Sussurros se agitavam como o vento por todos os lados, se aproximando. Peguei uma faca de estripar peixe e um cutelo. Encostei minhas costas na parede e fiz uma pequena reza, fechando os olhos. Santo Escritor, não faltai por mim... mas as abelhas picaram meus dois braços e minha perna. Só depois escutei o barulho dos tiros e o fedor da pólvora. Defronte à porta, pude ver a silhueta do soldado, envolto pela claridade da manhã e pela nuvem de fumaça. Um rosto disforme, um bigode largo e um sorriso no canto da boca, de puro deleite.

Arrastaram-me para uma cadeira e cerca de cinco pilantras de uniforme me cercaram. Sugeriram diversas vezes me matar, mas se fossem mesmo fazer isso, já teriam feito na primeira vez. O sangue que escorria me deixava tonto, mas tinha certeza de que se eu aguentasse o que estava por vir em seguida, eles não saberiam de nada. Eu tinha um novo papel a desempenhar, deveria fazê-lo com todas as minhas forças. A cada movimento involuntário que meu corpo fazia, as feridas das balas queimavam, e eram muitos movimentos. “Diga onde estão os outros, diga quem mandou matar Enrico e Mateo!”, disse o soldado de bigode largo, com o rosto colado ao meu. O silêncio do meu ofegar, seguido dos gemidos o fez perder mais uma vez a paciência. Sua mão me desmaiou naquela e em outras vezes. Acordava sempre com uma jarra de água no rosto, pois los muertos no mueren jamás.

“Tragam a mulher e a criança”, disse o soldado, para o meu desespero, “Ele vai falar”. O que se seguiu foi a situação mais difícil da minha vida. Percebi o quanto estava errado quando vi a cruz de sal, e que ela, agora, nem parecia tanto assim uma cruz. Minha segurança se desfez. Esse novo papel que tinha abraçado não fazia mais sentido algum, sem minha mulher e minha filha. Quem era eu? Um pescador, simplório pescador. Minha família era minha vida, e não estava em segurança. Elas tinham sido encontradas por eles antes de eu chegar. Isso me deixava em extrema necessidade, extremamento vulnerável. O hijo de puta fardado percebeu meu desespero assim que colocou minha mulher e minha filha na minha frente. Elas gritaram e choraram quando me viram, mas creio que foi mais pelo horror dos ferimentos e mutilações do que pelo terror de enfrentar aqueles soldados. “Acha que pode manter o silêncio quando estupramos e matamos sua familia?”, disse ele, sorrindo, “Acho que não”.

Implorei para que as deixassem em paz, que não fizessem o que estavam fazendo. Estava pronto para falar, contaria tudo. Revelaria o contrabando, os nomes dos meus amigos mais chegados. Diria onde estavam, como eram, o que vestiam. Assumiria a morte do soldado na praia e diria quem aniquilou a face do outro. Faria tudo isso e também o que mais mandassem. Não façam isso com minha família, não façam isso comigo. Contudo, nenhuma voz saiu de minha boca. Nenhuma palavra se formou. Nenhuma frase foi posta em ordem. O soldado de bigodes largos, nu da cintura para baixo, atônito, implorava para que eu delatasse tudo. Eu me calei, não era mais um nobre pescador, que colocaria sua família antes da revolução.

Sem cerimônias, e até com certo alívio, o soldado cortou a garganta do que tinha sobrado de minha mulher. Pude ver seu rosto contorcido pela dor e em desespero, suas mãos alcançando o pescoço, tateando a ferida, tentando agarrar a dor e jogá-la longe, inútil. A sua vida se esvaiu lentamente enquanto deitava no chão. O soldado olhou para minha filha, e depois olhou de volta para mim. “Esse é o fim que quer para sua menina, pescador de mierda?”, disse. Cuspiu em minha direção. “Sua mulher morreu, e mesmo assim não disse nada. Que pensa da vida? Não tem amor nesse coração imundo de peixe?”, deu-me outro soco. “Não ama a sua família?” disse, dando outro soco e mais outro. Escutei o choro inconsolável da minha filha, indo a distância, como se a estivessem levando de mim.

Inevitavelmente parei de sentir meu corpo, e, no vazio que antecedia minha morte, me colocaram em um veículo. “Temos que levá-lo para a enfermaria, se ele morrer aqui, nós que seremos torturados. Andale! Andale!”. O caminhão foi posto em movimento, chocalhando de um lado para o outro, conforme passava por buracos na estrada ou fazia curvas sinuosas, se afastando da aldeia. Chegar a tempo me parecia um sonho distante, ainda mais quando meu corpo estendido na traseira do veículo rolou para frente com a brusca freiada. “Por el pene del diablo! Uma árvore!”, praguejou um dos tacanhos fardados. Tive a impressão de ouvir meus algozes descerem e remungarem sobre o trabalho de retirar aquele tronco da estrada e da pressa em me levar para o quartel. Na certeza de que morreria ali, ouvi o primeiro grito agoniante que irrompeu no silêncio da floresta. Onde estava a minha filha?

Não sei quanto tempo durou, se é que durou algum tempo aquela confusão. Na agonia de quem morre, as sensações do mundo deixam de existir, forçando o tempo a um ritmo invertido, interior e anacrônico. Do compartimento escuro em que me encontrava pude perceber uma claridade, que me pareceu divina naquele instante. “Temos um cadáver aqui. Parece que foi torturado e deformado com todos os tipos de sadismo. Olhem essas marcas no rosto, esse cheiro”, disse uma das sombras. “Santo Escritor, esses cagalhões de farda mereceram cada degolada. Isso aqui é um dos trabalhos mais crueis que já vi”, disse uma segunda sombra. “Deixe me ver, afastem-se”, disse uma terceira sombra, “Sim, é terrível. Mas mais terrível do que imaginávamos, pois esse homem ainda está vivo. Vamos levá-lo ao Padre, peguem as armas e munições, vamos”. As sombras me pareceram, naquele momento, diabólicas, com rostos em forma de caveira e olhos escuros profundos. Los muertos, déjame murir, por favor. Mas antes me digam, donde está mi hija.