João: Pois então, namorando..?
Miguel: Pois sim. Que tal? Que achas?...
João: Muito bem! Quem diria...
Miguel: Eu sempre disse... Quero dizer, eu disse que um dia...
João: Sim, sim. Eu sei. Pois então, como a conheceste? Como tudo aconteceu? Me conte, homem de Deus!
(Silêncio. Olhares. Hesitação.)
Miguel: Pois lhe conto, meu amigo! Foi na terceira folga do meu trabalho, no horário do almoço, acreditas? Pois fora na esquina do banco, bem ali na barraca de pipocas... Amor à primeira vista... Existe, sim!
João: Ela estava comprando pipocas, na hora do almoço?
Miguel: Não, estava trabalhando. Ela é artista. Uma bela artista! Atriz! Quem diria! Seu velho amigo namorando uma atriz de cinema... Talvez nem tanto, mas de teatro, com certeza!
João: Uma artista! Santa Maria de misericórdia! Que bela escolha... Sabes o que dizem das artistas, não?
Miguel: Não sei. O que dizem?
João: Tu já deves saber... Dizem que são muito boas companheiras. Compreendes?
Miguel: Sim, sim! Muito boa!
(Silêncio. Olhares. Hesitação.)
João: Pois então, meu amigo, continue o relato! Dizias que ela trabalhava ao lado da banca de pipocas! O que fazia ali? Entretia a platéia..? Fazia truques..?
Miguel: Truques, sim, enganava a todos...
João: ...Enganava?! Como?
Miguel: Não leve a mal! Este é o trabalho dela! Belos truques...
João: ...Truques de mágica?
Miguel: Não, não... Truques de disfarce. Estava disfarçada de vendedora de pipocas! E lhe digo, meu amigo, que se não fosse eu tão esperto quanto sou, ela me enganava também. E juro por Deus que no princípio ela quase me levou a crer que era vendedora.
João: Mas como foi isso? Uma atriz disfarçada de vendedora. Mas a que propósito?
Miguel: A propósito evidente da própria profissão. E lhe digo mais! Lhe digo que convencia muito bem, pois que uma e outra vez apareciam pessoas que compravam suas pipocas! Veja só! Que bela atriz! Enganava e atuava como se fosse a própria vendedora! E ainda colocava os trocados no caixa, como que para mostrar sua honestidade! Foi ali que o amor apareceu. Quando vi aqueles dedinhos delicados, levemente amanteigados, aqueles olhos de meia lua, sorridentes. Não resisti. Tu não resistirias igualmente! Ninguém resistiria!
(Silêncio. Olhares. Hesitação.)
João: Aposto que não resistia igual, como dizes, com todo respeito.
Miguel: Sim, meu amigo, não resistirias..!
João: ...Se é como dizes, continue a história, estou curioso que ó! Como foi que conquistaste tal pedaço do céu..?
Miguel: Pois foi como se faz! Como se conquista a vida, em si mesma. Foram duas coisas: sabor e ar. Comi meu almoço e suspirei. Até parece engraçado, mas foi assim mesmo que aconteceu. Fiquei olhando para ela por algum tempo...
João: Não acredito! Muito bonito. Almoçaste a pipoca que ela fingia vender?
Miguel: Não! Claro que não! Nunca fui tolo! Nunca lhe comprei da pipoca! Pensa que cairia tão facilmente naquele truque!? Claro que não! Ela é uma boa atriz, concordo, mas sou muito mais ardiloso – no bom sentido, claro.
João: Pois se não foi com a pipoca, foi como? Não imagino outra maneira de conversar com ela...
Miguel: ...Eu imaginei! Não pense que sou lerdo, não. Penso rápido. Penso e ajo. Duas coisas que faço bem.
(Silêncio. Olhares. Hesitação. Mãos no bolso.)
João: E...
Miguel: Ah, sim! Durante a noite quebrei o carrinho de pipocas. Eu sei, parece estranho. Mas no outro dia tive certeza que ela apenas atuava como vendedora! Foi incrível! Até então apenas desconfiava... Sabe como é: não se tem certeza das coisas até a contra-prova. E a contra-prova veio no dia seguinte. Olhei pela janela do meu trabalho, de manhã, no momento em que ela chegou lá para fazer seus truques. E adivinhe...
João: Nossa, estou impressionado! Como foi isso? Não faço a menor idéia do que aconteceu? Prossiga...
Miguel: Pois ela fez outro de seus truques! Começou a pular e fazer piruetas no ar... Como se estivesse num circo! Sua especialidade é atuar, mas não deixa as acrobacias em segundo plano! Uma artista completa! A platéia juntou-se ao seu lado! Alguns tentavam se aproximar para tocar nela, saber se era de verdade, mas ela não deixava. Sempre que alguém tentava tocar ela se esquivava. Sabe como é a fama. As pessoas ficam um pouco alteradas com isso. Fãs... Eu assistia de longe, lá do sétimo andar. Assistia e ficava fascinado com o que via. De atriz à acrobata. Platéia e tudo mais! Apaixonei-me perdidamente. Sou um cara sortudo. Uma mulher perfeita.
João: Que história de amor!
Miguel: Sim! Até agora não acredito que tudo isso aconteceu comigo! É muito lindo!
João: E depois deste show de acrobacia? O que mais aconteceu?
Miguel: Bom, o show de acrobacia durou pouco. Um pouco mais de meia hora. Então ela mostrou outra habilidade artística: virou estátua. Sentou-se no meio-fio da calçada e colocou a mão no rosto. Imóvel. Uma hora inteira imóvel. Deveria trabalhar no Circo de Moscou! No cinema de Hollywood! No teatro da Glória! Impressionante! Uma mulher completa.
João: Mas como a conquistaste, homem de Deus! Contaste-me até agora como ela o enfeitiçou... não deve ter sido fácil.
Miguel: Pois bem. Não foi fácil. Foi difícil, sim. Atrizes fazem beicinho, imitam, ardilam, fazem meia volta, saem, voltam, dão as costas... São pessoas imprevisíveis. Mas muito sentimentais. O fato é que depois daquele dia, ela sumiu da esquina do meu trabalho. Simplesmente sumiu. Estava fazendo-se de difícil. Veja que coisa bonita. Não queria mais trabalhar ali. Queria algo maior! Queria me impressionar mais! Ambiciosa ela, também. Coisa fofinha do meu coração. Perdidamente apaixonado por ela fiquei... Foi trabalhar no teatro. Mas não era qualquer teatro. No teatro da Glória! Coisa fina. Casa de espetáculos no bairro mais nobre da cidade! Também não era o papel principal, mas era como se fosse. Eu fui lá mais de uma vez. Assisti a tudo de pé. Aplaudi primeiro e fui o último a parar. A vi em todas as apresentações. No papel de faxineira. Incrível! Impressionante! Não subia aos palcos, pois que merecia o palco da vida, como os verdadeiros artistas. Atuava junto aos espectadores, como só ela era capaz! Atraía cada vez mais pessoas com seu trabalho de vanguarda. Fingia limpar tudo. Atuava muito bem, visto que a casa de espetáculos estava sempre impecável. Uniforme impecável. Contra-regras são tudo para o teatro, não achas?
João: Acho sim. Contra-regras fazem todo ambiente ficar perfeito. A troca de cenário, figurino, tudo.
Miguel: Pois sim, bem que o meu amor tinha os melhores contra-regras da cidade trabalhando para ela agora. E eles prepararam tudo para ela. Prepararam tudo mesmo.... ela conseguia atuar de faxineira num ambiente limpo, bem vestida, e com os textos bem ensaiados. Perfeito. Apaixonei-me muito mais. Doce emoção.
(Silêncio. Olhares. Impaciência. Coça-barba)
João: Mas como cativaste o coração da moça!
Miguel: Acalme-se, amigo meu! Tudo tem sua hora, e a hora desta prosa está adiantada. Pois tenho que ir embora...
João: Não! Agora fique aqui e conte-me tudo! Não posso perder isso!
Miguel: Mas preciso pegar o bonde, ele sai em minutos!
João: Eu te levo em casa, não te preocupes. Conte-me.
Miguel: Muito bem. Pois termino agora de contar, de uma vez só. Sem respirar, por causa do adiantado da hora.
(Muito tempo depois. Muito, mas muito tempo mesmo.)
João: Mas me diga uma coisa, nobre amigo: essa moça, artista, como tu dizes, ela sabe que vocês estão namorando?
Miguel: Pois há de saber, assim que trocarmos as primeiras palavras. Essa será a primeira coisa que contarei a ela, sobre nós dois.
João: Que horas era mesmo o teu bonde?