segunda-feira, dezembro 01, 2008

Um Final em Reticências.

João Ventura conduziu seu olhar amargurado pelas paredes, pelas fotos em sépia que as ornavam, pela mala aberta e por suas roupas antigas dobradas sobre a cama, prontas para serem embaladas. Seu olhar vagueou mais alguns minutos em silêncio. Então olhou para suas mãos calejadas de anos de labuta e notou um envelope, que se mexia apreensivo entre seus dedos. A carta estava endereçada a ele; datava de anos atrás. Nunca a lera.
O silêncio constrangedor que antecede a partida de João Ventura – constrangedor a tal ponto de parecer que um homem como ele não teria palavras para o fim – fora quebrado pelo barulho quieto e comportado do papel que se rasgava, suavemente, revelando uma carta amarelada pelo tempo e pelo demasiado cuidado que tivera nestes anos todos.
Leu sete vezes e meia. Parou. Sorriu. Voltou a ler e completou a oitava.
Uma carta de amor. Estranhamente, os sons da rua começaram a ecoar pelo quarto. O vento, os pássaros, todos juntos naqueles recitais de primavera. Inclusive as fotos receberam cor. A mala aberta e vazia fora substituída pelo sol, que agora brilhava dentro do aposento. João Ventura, pela primeira vez em muito tempo, solta um sorriso e um suspiro em forma de palavra: "uhum".
Levantou-se. Foi até a janela e curvou a si mesmo em direção ao espaço. A leitura de tal declaração encheu seu interior com o mais sublime sentimento de gratidão – gratidão não em relação à pessoa que escrevera, mas em relação à própria carta. Aos exaltados elogios que fizera ao amor; à vida; a tudo. Antes que alcançasse as estrelas, o próprio chão sob seus pés falhou. Fora arremessado novamente para a realidade cinza e fria da solidão. Notara que a carta chegara longe do tempo e distante da possibilidade. Era quase uma obra literária incompleta. Reticente, faltavam os anos que esperava para le-la. Faltavam as respostas apaixonadas que daria. Faltavam ... Simplesmente faltava. Faltava, nesta história, a si próprio.
Notou, de súbito, que a partida nunca fora sua, mas sim, de sua adorável companheira. Juliana Casaverde é que arrumava as malas, as roupas, seus objetos de uso pessoal, e encaminhava tudo numa alegria só sua, na esperança da saída de uma situação solitária, aliada a uma condição de regresso modificadora. João Ventura é que ficava triste, pois não tinha a possibilidade de mudar, mesmo que sua situação fosse favorável, pois seu coração não estava em frangalhos por tê-lo exposto assim, por tanto tempo, em uma carta de amor nunca respondida – sequer lida.
João Ventura sentou-se novamente onde estivera a maior parte do tempo. O olhar já não era amargurado, mas as fotos continuavam em sépia na parede. O silêncio da permanência continuava tão aterrorizador quanto o da despedida. O sol se pôs dentro da mala, e suas roupas estavam no armário, não mais sobre a cama. No fim, a leitura de tal carta trouxe a felicidade de saber que não é possível ser só no mundo, ao mesmo tempo que trouxe a tristeza de saber que a solidão persiste. João Ventura sentou-se onde estivera a maior parte do tempo, e soltou um suspiro sério em forma de reticências: "...".

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